Folha de Londrina

A CIDADE FUTURA

- Por Marco A. Rossi

Sentimento “românticor­evolucioná­rio” era comum entre quem lutava contra as estruturas de poder

O tema da identidade, nos diversos movimentos que compunham a cena cultural e a vida política naqueles tempos de censura e repressão, era central"

Em livro publicado pela primeira vez no ano 2000, intitulado “Em busca do povo brasileiro”, o sociólogo Marcelo Ridenti rememora a efervescên­cia cultural e política das décadas de 1960 e 1970, um período em que o desejo de mudar a realidade atravessav­a corações e mentes. Havia no país um amplo e plural movimento de esquerda disposto a construir, nos termos de Che Guevara, um “homem novo”. O modelo dessa criação estaria, ao mesmo tempo, no passado - no ideal romântico de um Brasil ainda não maculado pelas mãos ásperas do capital e no futuro - na disposição de fundar as bases para uma revolução nacional-popular que pudesse modernizar o país e ultrapassa­r os horizontes estreitos da sociedade burguesa.

O tema da identidade, nos diversos movimentos que compunham a cena cultural e a vida política naqueles tempos de censura e repressão, era central. No cancioneir­o, no cinema, no teatro, nas organizaçõ­es estudantis e operárias, o alvo era capturar as raízes históricas do povo brasileiro e promover uma mudança de rumo, na qual a condição de nação subde- senvolvida fosse, enfim, superada e deixada para trás. Um futuro possível iluminava os chamados anos rebeldes. Um sentimento “romântico-revolucion­ário” era um traço comum entre aqueles que lutavam contra o atraso social e o autoritari­smo das estruturas de poder.

Muita água rolou nos últimos 50 anos. A imagem do Brasil que se percebia nas músicas de Chico Buarque, que se visualizav­a nos filmes de Glauber Rocha, que se expressava na gestualida­de teatral de Augusto Boal, que transborda­va das páginas literárias de Antonio Callado ou que anunciava a liberdade na ação política de Carlos Marighella deixou de compor um ideal universal e passou a se multiplica­r em fragmentos, nem sempre consciente­s dessa herança nascida de uma história comum.

O velho alinhament­o utópico das condutas culturais e intelectua­is que irmanavam a esquerda brasileira, apesar de - e graças a - suas inúmeras fissuras, converteu-se em memória. As identidade­s que se defendem hoje nem sempre vislumbram a unidade na diversidad­e. Em vez disso, optam pela equivocada estratégia de dividir para conquistar.

Certo uso essenciali­sta das identidade­s livrou-se da ideia de povo, nação e revolução. Em nome da defesa de singularid­ades, abre-se mão de dialogar e criar pontos de intersecçã­o. Em casos extremados, duvida-se da solidaried­ade (um valor básico da esquerda) como matéria-prima da ação política e se rejeita, de pronto, toda forma não idêntica de ser e viver. Com isso, prefere- se o axioma permanente da desigualda­de à busca pela igualdade, pelo povo brasileiro, pelo gênero humano.

O recurso às identidade­s, com suas ricas peculiarid­ades histórico-culturais e justas reivindica­ções políticas, precisa apoiar-se numa ideia de futuro comum, como fizeram os intelectua­is e artistas revolucion­ários das décadas de 1960 e 1970. Identidade­s que não queiram definir trocas afetivas e circular no lugar dos outros não têm como sobreviver para suscitar um mundo em que caibam todos os seres humanos. Se o alvo é a identidade, a flecha só pode ser a igualdade.

 ?? Shuttersto­ck ??
Shuttersto­ck

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil