Folha de Londrina

O lobo não é solitário

- Fale com o colunista: avenidapar­ana@folhadelon­drina.com.br

Por que ler os clássicos? Por um motivo, acima de todos: o ser humano se parece mais com os livros do que com as máquinas. Tudo que está em nossa realidade já esteve antes em algum bom livro.

Quando vejo tanta gente repetindo bordões na internet, em obediência às ordens de um criminoso, lembro-me de uma cena de “Antes que Anoiteça”, do escritor cubano Reinaldo

Arenas (1943-1990):

“Nos terraços realizavam-se também os círculos de estudo. Consistiam em uma leitura monótona dos discursos de Fidel Castro e estar de acordo com tudo o que ele dizia; geralmente, não havia nenhum contratemp­o nessa rotina. Até que um dia subiu ao terraço um grupo de jovens testemunha­s de Jeová; estavam presos por insubmissã­o ao serviço militar obrigatóri­o. O oficial deu um exemplar do Granma com o discurso de Fidel a um daqueles rapazes para que o lesse, mas ele se recusou, argumentan­do que sua religião não permitia ler aquilo. O oficial golpeou-o com a arma e o jogou no chão, ficou pisando no rapaz enquanto lhe batia com o fuzil na cabeça, na barriga e nas costas. Bateu-lhe tanto que outros oficiais acorreram e pediram-lhe para parar, pois mataria o jovem se continuass­e. Então o oficial entregou o jornal a outro daqueles jovens e o mandou ler. Enquanto lia, o rapaz tremia e chorava sem parar. Quinze anos já se passaram e não consigo esquecer esse rapaz”.

Quando releio esse parágrafo, eu me lembro dos que reproduzem os slogans do Grande Companheir­o, e o fazem por livre vontade.

*******

O recente atentado terrorista em Juiz de Fora me fez voltar a uma clássica passagem de “Crime e Castigo”, de Dostoiévsk­i, na qual o estudante Raskolniko­v mata uma velha usurária, supostamen­te porque ela merecia morrer:

“Tirou o machado de sob o capote, levantando-o com as duas mãos e, com um gesto seco, quase mecânico, deixou-o cair na cabeça da velha. Suas mãos pareciam-lhe não ter mais forças. Entretanto, readquiriu­as assim que vibrou o primeiro golpe.

A velha estava com a cabeça descoberta, como de hábito. Os cabelos claros, grisalhos e escassos, abundantem­ente oleados, formavam uma pequena trança, presa à nuca por um fragmento de pente. Como era baixa, o golpe atingiu-a nas têmporas. Deu um grito fraco e caiu, tendo tido, no entanto, tempo de levar as mãos à cabeça. Uma delas sustinha ainda o penhor. Então Raskolniko­v malhou-a com toda força, mais duas vezes.”

Logo em seguida, no entanto, Raskolniko­v acaba por cometer um crime que não havia previsto. Ele mata a irmã da usurária, Lizavéta, testemunha do primeiro crime.

“No meio da sala, Lizavéta, com um grande embrulho nas mãos, contemplav­a, estupefata, o cadáver da irmã. Estava pálida como cera e parecia não ter força para gritar. (...) Raskolniko­v lançou-se contra ela, o machado nas mãos.”

A morte de Lizavéta demonstra que o império do terror jamais se esgota em uma só maldade; ao contrário, exige uma sucessão de crimes, destinados a encobrir o primeiro. O lobo nunca é solitário - sempre tem uma alcateia.

Eis que surge o lobo coletivo: ele quer devorar você e tudo aquilo que você ama.

Tudo que hoje habita a nossa realidade já existiu antes sob a forma de literatura; inclusive os crimes sem castigo

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil