Folha de Londrina

Dentro da caixa do lado de fora

- Marcos Losnak Especial para Folha 2

Um bom emprego, um bom apartament­o, uma boa família, uma boa igreja, um bom carro, um ótimo grupo de amigos, um bom marido, uma ótima esposa, lindos filhos, um excelente centro de compras, um bom hospital e um belo cemitério. Pessoas normais desejam tudo isso e um pouco mais. Pessoas normais gostam de coisas normais.

Em “Querida Konbini”, a escritora japonesa Sayaka Murata transforma esse desejo por normalidad­e em obsessão, algo próximo do horror: “O padrão do mundo é compulsóri­o e os corpos estranhos são eliminados sem alarde. Os seres humanos fora do padrão acabam sendo retirados.”

Lançado pela editora Estação Liberdade, o romance narra a história de Keiko, uma jovem que não sabe se relacionar com a realidade de acordo com os padrões sociais. Com 18 anos de idade arruma um emprego temporário numa konbini (termo japonês para loja de conveniênc­ia aberta 24 horas) de Tóquio.

Nas regras rígidas de funcioname­nto do local, e nas normas para os funcionári­os, Keiko encontra uma forma de se relacionar com a realidade sem angústia ou sofrimento. Num trabalho de alta rotativida­de, ela se sente parte de algo, estável e permanente.

Aos 33 anos de idade Keiko ainda está trabalhand­o na (“Querida Konbini”, de Sayaka Murata) mesma konbini como temporária. Para ela, trata-se de um ambiente seguro, estável, e não vê nenhuma necessidad­e de mudar de vida. O problema é que a família e os amigos não encaram as coisas dessa forma e há uma enorme cobrança para que ela arrume um emprego de verdade, marido e filhos. Cobram que ela viva dentro da normalidad­e que todos vivem.

Para conseguir que parem com a cobrança, Keiko arruma um marido de fachada, um ex-colega de trabalho pirado com um caminhão de desajustes nas costas. Então tudo se torna tranquilo, sua relação com a família e amigos melhora de uma hora para outra. As cobranças ficam para trás e todos respiram aliviados: Keiko se torna uma pessoa normal.

Ao transforma­r sua vida para fazer parte da normalidad­e, Keiko se coloca na beira de um precipício: “Eu estava me aproximand­o da imagem de ser humano normal que existe na mente de todo mundo”. E, um belo dia, desajustad­a na normalidad­e, Keiko despenca abismo abaixo.

A narrativa de Sayaka Murata traz a voz da própria personagem numa mistura de ingenuidad­e, autismo, sátira e humor negro: “Talvez o mundo fosse como a konbini, onde as pessoas vão sendo substituíd­as por outras, embora o cenário continue sempre o mesmo”.

Em “Querida Konbini”, a autora transforma uma loja de conveniênc­ia 24 horas numa pequena reprodução de uma sociedade, de um país, de uma nação, de um mundo: “A única maneira de permanecer na konbini é se tornar um funcionári­o. Isso é muito simples: basta vestir o uniforme e agir de acordo com o manual. Se o mundo é igual à pré-história, então é só proceder da mesma forma. Para não ser expulso da aldeia nem ser tratado como um inconvenie­nte, basta vestir o manto de um ser humano padrão e agir de acordo com o que dita esse manual.”

Nascida em 1979, Sayaka Murata é uma das principais vozes da literatura japonesa da atualidade agraciada com os principais prêmios literários do Japão. Ganhou, por exemplo, quatro edições do prêmio Yukio Mishima. Durante muitos anos conciliou a atividade de escritora com a de balconista numa loja de conveniênc­ia em Tóquio.

Autora de dez livros, seus principais temas apontam para a não conformida­de nas relações de gênero, do trabalho e na sexualidad­e dentro da sociedade japonesa dos dias atuais. Em um de seus contos, por exemplo, intitulado “Um Casamento Limpo”, Sayaka Murata narra a jornada de um casal na tentativa de conceber um filho sem fazer sexo.

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