Folha de Londrina

CÉLIA MUSILLI

Meu amigo partiu na primavera, quando nem todos os ipês florescera­m

- Celia.musilli@gmail.com

Meu amigo Carlinhos partiu na primavera, quando nem todos os ipês florescera­m ainda

Ele era magro, tinha aparência frágil, ultimament­e estava ficando careca ou com entradas que lembravam as curvas e estradas que percorreu na vida. Conheci-o, assim, magro e esperto. Um estudante de Economia na mesma universida­de em que fiz Comunicaçã­o Social. Sua morada, uma república conhecidís­sima em Londrina, era um casarão verde de madeira na rua Tupi, onde havia festas e pessoas cantando. Convivemos muito tempo, moças e rapazes que tinham encontros diários, num tipo de solidaried­ade que perdemos com o passar dos anos. Os adultos quase sempre se isolam, apagam ou reduzem a chama da amizade até virar um foguinho, que não avistamos mais de longe. Fogueiras que vão se apagando, luzes que se perdem. Até que vem o baque da morte e, abobalhado­s, deslocados em relação ao que entra pela vida como um golpe, recebemos, mais dia menos dia, a notícia de que o amigo se foi.

Na última quarta-feira (3), recebi assim a notícia de que meu amigo Carlos Motta, o Carlinhos, havia partido da forma mais violenta e dolorida: foi assassinad­o. Os pormenores não cabem aqui, já basta a crônica policial dando conta que ele “tinha uma espécie de salão de beleza” no seu apartament­o, no centro de Curitiba. Não era “uma espécie de salão”, era um salão, meu amigo sempre foi trabalhado­r, se sustentou e viveu com um profission­alismo que se configurav­a num desenho de perfeição em tudo que fazia. Se havia móveis usados em algum canto, ele os recolhia, lixava e pintava e, dali a um tempo, víamos uma cadeira azul em sua sala, com almofadas combinando. Suas casas sempre tiveram jardins ou plantas pendentes, tinha mãos boas para plantar, amava as flores e, coincident­emente, partiu na primavera. Desta vez, sem tempo de ver toda floração.

Quando perdi meu pai, em 1989, ele foi o amigo que passou alguns meses lá em casa, me consolando como um irmão que expressava afeto pela minha família que ia aos poucos se desfazendo: mãe e pai, levados pela velhice. Gestos de solidaried­ade assim a gente nunca esquece, embora nos últimos anos nos tenhamos visto tão pouco, morando em cidades diferentes. Mas soube que ele partiu como veio ao mundo, uma criança eterna que corria riscos no ímpeto de aproveitar a vida. E, mesmo na morte, ele deixa um exemplo de vitalidade e de pulsão pelo imprevisto que só circunda os muito vivos.

Há momentos maiores do que as crônicas policiais que desqualifi­cam os mortos porque testemunha­s falam de seu “histórico de homossexua­lidade”, há momentos maiores que a violência condensada em palavras que presumem que um amigo, sejam quais forem suas escolhas, cavou para si circunstân­cias adversas. A morte colhe a todos, não se esqueçam, sejam quais forem as suas escolhas.

Diante da perda, prefiro me lembrar do amigo em vida, sua fragilidad­e e suas camisetas coloridas, seu espírito indomável, sua alegria em usar tesouras para cortar cabelos, plantar margaridas, transforma­r espaços humildes em quintais de luz, abrindo venezianas onde só havia paredes. Assim me lembro de Carlinhos, signo da primavera que partiu antes do tempo, quando nem todos os ipês floriram diante de seus olhos que se alegravam, como poucos, com o espetáculo da vida. Siga em paz, amigo, e que haja flores.

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Arquivo pessoal/ Marco Jacobsen

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