Folha de Londrina

O jardim das ilusões perdidas

- por Paulo Briguet

O jardineiro me conduz pelo jardim. Entre as flores e árvores, vejo alguém que não me é estranho. Não preciso de mais que um instante para reconhecer Manuel, o primeiro amigo que fiz quando me mudei para Araçatuba, no final da infância. Manuel revolve a terra em um canteiro: “Aqui estão plantados seus medos e angústias, Paulo”.

Um pouco adiante, debaixo de uma seringueir­a, vejo Bonfim, que sonhava em ser astrofísic­o. A última vez que nos vimos foi em 1988, em um bar do Bixiga. Tomamos muita cerveja naquela noite; dormimos na República e no dia seguinte almoçamos no Grupo Sérgio. Bonfim abre um sorriso: “Aqui estão plantadas suas falsas alegrias, Paulo”.

Há um lindo ipê carregado de flores amarelas. À sombra dessa árvore, sentados em um banco de madeira rústica, estão Jack e Vivian, um dos casais mais bonitos que já conheci. Na grama, brinca uma criança: é o filho deles que nunca nasceu. “Aqui está plantado o seu hedonismo, Paulo”, diz Vivian.

Eis que se aproxima o Gordo Edson, com suas vestes brancas de médico, reluzentes em meio aos plátanos. Desde o primeiro momento em que me viu, Gordo Edson tentou me convencer sobre a existência de uma coisa chamada realidade. “Aqui estão plantadas suas mentiras, Paulo”, conta-me o doutor.

No fundo do jardim, passam as águas de um córrego. À margem, com um livro nas mãos, está Calula. Profundame­nte concentrad­a na leitura, ela demora a notar minha presença. Mas, quando me vê, aponta as águas e diz: “Aqui está plantado o seu desespero, Paulo”.

Atravesso o córrego por uma pequena ponte japonesa e chego ao outro lado do jardim, onde existe um caramanchã­o. França ensaia as falas de uma peça de Nelson Rodrigues. A cinco metros de onde ele está, vejo um amontoado de terra revolvida. “Aqui está plantado o seu ódio, Paulo.”

O jardineiro me conduz pelo braço; caminhamos numa trilha que sobe. Durante alguns momentos, sinto que o meu próprio corpo pesa como se fosse uma cruz. Ao final do caminho, entramos numa cabana de palha. Lá dentro Herberto Helder e Ferreira Gullar conversam com alguns estranhos personagen­s. Quem são eles?, pergunto ao poeta maranhense. Gullar responde: “Simão Cireneu, o Bom Ladrão e o Centurião”. Sinto-me indigno de estar naquela morada. “Aqui está plantada sua descrença, Paulo”, diz Herberto Helder.

O jardineiro me leva outra vez para fora e aponta o contraste harmonioso entre as cores do céu e da terra. À sombra de uma figueira, há um leito e uma cadeira. Na cadeira, está meu pai. No leito, está um homem visivelmen­te ferido e torturado. Meu pai cuida das feridas do homem, conversa em voz baixa com ele. De repente, reconheço a vítima: é Celso Daniel. Então meu pai diz: “Aqui estão enterradas as suas ilusões, Paulo”.

Entre as flores e árvores, encontro velhos amigos e descubro onde estão enterrados meus erros

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