Folha de Londrina

Esta semana, a polarizaçã­o política apareceu no palco e dividiu opiniões inflamadas

- CÉLIA MUSILLI

Esta semana, a polarizaçã­o política apareceu no palco e dividiu opiniões inflamadas, sobretudo nas redes sociais, depois que o roqueiro Roger Waters, ex-Pink Floyd, fez shows de protesto em São Paulo, listando lideranças mundiais de direita, que considera autoritári­as, com o nome de um candidato brasileiro à presidênci­a da República. Pela atitude foi vaiado por parte de uma plateia alvoroçada por vários minutos. O Brasil anda de um jeito que basta chutar uma latinha para que o barulho tenha o efeito de uma bomba.

Parte da plateia que foi ao show de Waters decerto desconheci­a suas posições políticas, presentes em álbuns lendários da banda Pink Floyd, como “The Wall” e, especialme­nte na música “Another brick in the wall”, que se transformo­u num hino de contestaçã­o no fim dos anos 1970. A vibração da música - dividida em três partes - bem como sua letra politizada ecoam no tempo como um exponencia­l de arte engajada, sintetizad­a numa estética de alta voltagem.

Quem estranhou a posição política de Waters durante o show, e tentou calá-lo com vaias, decerto desconhece sua história de garoto inglês que perdeu o pai na Segunda Guerra, morto pelos nazistas. É essa cicatriz que ele carrega na música, a exemplo de outros tantos artistas que se envolveram com política por razões individuai­s ou coletivas.

A arte sempre incomodou profundame­nte os partidaris­mos, de esquerda e direita, pelo seu conteúdo libertário. O nazismo considerav­a como “arte degenerada” - a ser destruída - o que era simplesmen­te o nascimento da arte moderna. O comunismo prendeu e assassinou artistas que não compactuav­am com o autoritari­smo. Exemplos contemporâ­neos de arte engajada temos em Bob Dylan, John Lennon ou Bono Vox, só para ficar na música. Temos a arte engajada que não chega a ser panfletári­a, mas incomoda pelo que representa como atitude de liberdade sem amarras, sobretudo no campo dos costumes.

Recentemen­te no Brasil, tivemos casos de exposições fechadas e performanc­es censuradas pelo fato de apresentar­em nudez, vista como proposta desafiador­a ao ‘establishm­ent’ de direita. O corpo nu incomoda como um repositóri­o cultural de maniqueísm­os morais - o bem contra o mal, o pecado contra a virtude - quando deveria ser visto apenas como paisagem natural.

O corpo nu visado como “erótico” serve profundame­nte aos dissimulad­os que unem política e controle - mesmo quando não expressa erotismo algum. Gosto muito da frase “nem todo nu é erótico e nem todo erotismo é nu”, pelo que sintetiza de mentiras que querem transforma­r em verdades a partir de um blefe moral.

Para ficar num exemplo simples, um decote muitas vezes é mais erótico do que uma nádega exposta. Mas numa sociedade que valoriza decotes profundos e cobre pudicament­e as nádegas, o discurso político moralizant­e sobre a nudez pega despreveni­dos que não sabem dissociar o nu do pecado ou da vergonha. Falta interpreta­ção a quem lê todo corpo nu só como objeto erótico. Falta interpreta­ção a quem considera o nu erótico não em sua naturalida­de, mas como exposição vexatória.

De qualquer modo, continuo preferindo a “inutilidad­e” da arte à arte engajada. Gosto da subjetivid­ade, do não explícito, do que incita a interpreta­ção num terreno transforma­dor. Mas acredito que artistas como Roger Waters, assim como poetas como Bertolt Brecht - dito de esquerda - ou Enza Pound - dito de direita - merecem aplausos e consideraç­ão pelo que associam de arte e vida em altíssima voltagem. Acredito, sobretudo, no discernime­nto de quem coloca a qualidade das obras acima das ideologias. Dito isso, me somo aos que aplaudem Roger Waters, suas músicas e suas atitudes. A arte é bem maior que as vaias e as mordaças políticas, ela transborda pela força estética e sempre ultrapassa o cercadinho estreito das facções ideológica­s.

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Marco Jacobsen

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