Folha de Londrina

AOS DOMINGOS PELLEGRINI

- D.pellegrini@sercomtel.com.br

Consolo-me atendo à crença de que todos de todo sexo tem de ser, antes de tudo, gente

Quando alguém fala “sem sombra de dúvida”, será que acredita mesmo que dúvida faz sombra? Decerto nem pensa nisso, fala de ouvir falar uma figura de linguagem talvez lá do tempo das pirâmides, figuras que aliás lançam mínima sombra. Prefiro a expressão “sem manto de dúvida”, sugerindo desnudamen­to, as dúvidas como roupas descartada­s até a nudez da verdade.

E há dúvidas que assombram e dúvidas casuais mas crescentes, como ao me dar conta do B de LGBT ser bissexual. Mas se é bi, penso, não é carente nem deficiente, é sobrevalen­te, então que pretende mais? Como só pesquisa varre sombra de dúvida, consulto Dr. Google e eis que além da bissexuali­dade há a pansexuali­dade e a polisexual­idade, aí se incluindo os heteroflex­íveis, os ambissexua­is, os bicuriosos, os panromânti­cos, os sapiosexua­is, os omnisexuai­s, além dos de sexo fluido e também os “queer”, indecisos entre o que ser e sem querer se rotular.

Descubro-maisummant­o-quetantas sexualidad­es foram levantadas pelo pioneiro sexólogo Alfred Kinsey já lá desde o meio do século passado; então, me digo, veja como sou ignorante.

E, além da variedade, descubro ainda, revelou-se desde então que os outros sexos, além do hetero e do homo, tem mais quantidade do que se supunha.

Opa, me pica a pulga, será que corro o risco de virar minoria? Não, logo adiante descubro que os homos e bis somados a todas as outras minorias não chegam a 10% da população. Correspond­endo à estatístic­a, tenho uma minoria de amigos gays (com os quais porém não falo de sexo, será machismo meu?).

Enfim, sei só que tanto não gosto de truculênci­a machista quanto de fricote gay, no mais creio que as minorias enriquecem a humanidade, inclusive com seus heróis passivos - como Alan Touring, o pai do computador, perseguido, castrado quimicamen­te e suicidado aos 42 anos por ser homossexua­l.

Mas há também herói ativos como os gays de Stonewall, bar em Nova Iorque onde a polícia, dando batidas, distribuía agressões e xingamento­s, até o dia de 1969 em que os gays disseram chega e foram pro pau, botando a polícia para correr em vários enfrentame­ntos, com coragem cidadã que inseminou o orgulho gay em todo o mundo. Legaram o exemplo de que gays tem de lutar por si mesmos, sair do armário com clareza, firmeza e capacidade.

Porém a pulga pica: meio século depois de Stonewall, não parece que é preciso brigar menos e afirmar-se mais? Não parece haver uma tutelagem de LGBT ou também será machismo meu? Ou será senilidade sentir saudade de quando sexo não parecia tão essencial? (Mas a pulga sussurra: lembre de Jung, “o homem é um ser obcecado por sexo, comida, segurança e poder”).

Consolo-me atendo à crença de que todos de todo sexo tem de ser, antes de tudo, gente. Como Ney Matogrosso, de quem sou fã como cantor e cultor de atitudes. No palco, desbunda, na vida tem prumo. Leva a calvície com naturalida­de e elegância. Na polêmica das biografias, foi firme a favor da liberdade. Não repete palavras de ordem de esquerda ou direita. O aplauso das crianças mostra que sua arte é assexual. E aos 78 anos Ney encerra uma temporada de centenas de show e já começa outra, mais ativo que abelha na primavera!

Em caminhada com cães em São Paulo, lá em 1980 e tanto, Ney apareceu sozinho, sem seguranças, e caminhou tranquilo com todo mundo. Então lhe perguntei cadê o cachorro. Tá no coração, ele respondeu sereno e sorridente, “no meu coração convivem gatos e cachorros”.

Ouço falarem que castigo de machista é ter filho ou neto gay e, se me acontecer, que seja um baita homem que nem Ney Matogrosso. Sem dúvida nem sombras.

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