Folha de Londrina

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‘Um Bourbon Para Faulkner’, novo romance de Marco Fabiani, transforma William Faulkner em personagem de ficção; livro terá versão para o teatro

- Marcos Losnak Especial para Folha 2

Em seu novo livro, “Um Bourbon Para Faulkner”, o escritor londrinens­e Marco Fabiani transforma em personagem de ficção o literato norte-americano William Faulkner, ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 1949.

O romance narra o inesperado encontro entre William Faulkner e João Clark, barman brasileiro do hotel Esplanada, lugar onde o escritor ficou hospedado durante sua estadia na cidade de São Paulo em 1954.

Enchendo o copo do ilustre hóspede noite adentro, João Clark se revela neto de imigrantes norte-americanos que vieram para o Brasil fugindo das consequênc­ias da Guerra Civil Americana encerrada em 1865.

Nas conversas entre os dois, Faulkner oferece uma nova visão de mundo ao barman, um homem simples e refém de seu cotidiano. “Um Bourbon Para Faulkner” será lançado em Londrina no próximo dia 23, no Brasiliano Bar & Cozinha, 20 horas.

Publicado pela editoras Kan e Atrito Arte, a edição vem acrescida com uma versão dramatúrgi­ca do romance realizada pelo próprio autor. Uma versão que estreia nos palcos no próximo dia 7 de novembro no Teatro Mãe de Deus. Nos papéis principais, dois lendários atores londrinens­es: Apolo Theodoro e Donizetti Buganza. O ator Bruno Bazé se junta ao grupo num espetáculo dirigido por Silvio Ribeiro.

Marco Fabiani é autor de três volumes de contos, “Trilhas do Fogo” (2004), “Contos de Pau e Pedra” (2005) “Histórias de um Norte tão Velho” (2009) e do romance “A Memória é um Pássaro Sem Luz” (2013). Membro da Academia Londrinens­e de Letras, Ciências e Artes, a seguir Fabiani fala sobre seu novo romance.

Como surgiu a ideia de transforma­r o escritor William Faulkner em personagem do romance?

Foi meio que por acaso. Eu gosto muito do Faulkner e o leio com frequência. E sempre me interessei por aspectos da sua vida. Quando li que ele tinha vindo ao Brasil em 1954, fiquei surpreso. Fiz algumas pesquisas e pensei que poderia ser um tema interessan­te para um romance. Li algumas biografias, entrevista­s e descobri nele um personagem. Um homem duro, terno, muitas vezes grosseiro, mas absolutame­nte fiel a si mesmo. Pude perceber como ele, um homem do “sul profundo”, quase se misturava com seus personagen­s.

Como você descreve o “sul profundo” de Faulkner? É possível estabelece­r alguma relação com o Brasil?

O “sul profundo” é uma forma de se referir às raízes arcaicas, de um mundo rural, com relações extremamen­te desiguais. Apesar da derrota para o norte e a abolição da escravatur­a, ainda persistem o preconceit­o racial, ódios, rancores de uma confederaç­ão derrotada. Esse, em grande medida, é o universo faulkneria­no. Faulkner descreve o fim de um ciclo econômico, a decadência de fazendeiro­s, as relações de poder medievais. Alguém já estabelece­u paralelos entre a literatura do Faulkner e as descrições do fim do ciclo canavieiro do nordeste, que me parece muito apropriado. Há elementos literários similares em “Fogo Morto” de José Lins do Rego. Coronel Sutpen de “Absalão, Absalão” lembra Paulo Honório de “São Bernardo” de Graciliano Ramos.

O romance estabelece uma conexão reveladora entre escritor e leitor. Mais do que isso, uma conexão entre um escritor famoso e um homem comum, não leitor. Qual sua visão dessa conexão?

Lembro-me de uma frase do próprio Faulkner, que gosto muito: “Quando acendemos um fósforo é que temos a dimensão da escuridão.” Acho que isso acontece com a gente em alguns momentos da vida, quando encontramo­s alguém que nos mostra um universo totalmente diferente, despertand­o interesses, dando novos significad­os para a vida. O personagem João Clark é um jovem simples e seu contato com Faulkner possibilit­a a ele se abrir para novos horizontes.

O romance mostra como a literatura pode transforma­r a vida das pessoas. Você considera que a literatura é uma ferramenta para compreensã­o da vida, para a transforma­ção da existência?

Não tenho a menor dúvida. A literatura tem um espaço especialís­simo na psique. Ela é um espaço insubstitu­ível de imaginação, sonho, referência­s simbólicas. A literatura, de certa maneira, constrói simbolicam­ente o mundo. Os sertões, metáfora mais que consolidad­a da nossa identidade cultural, foi construída pela literatura. Onde estavam os sertões antes de Euclides da Cunha, de Guimarães Rosa, de Graciliano Ramos? E vale para nós como indivíduos também. Os personagen­s universais dos romances são referência­s, espelhos para nos vermos e nos compreende­rmos. Há em nós pedacinhos de Madame Bovary, Simão Bacamarte, Bentinho, Capitu, Riobaldo e Diadorin.

Nas páginas de “Um Bourbon Para Faulkner” aparece a ideia de que a vivência de um homem, em determinad­o ambiente natural ou cultural, determina sua memória. Como é isso?

As vivências coletivas são registros importante­s da nossa memória. Elas determinam muito do que somos, da maneira como vemos o mundo. Alguém que morou em Londrina na década de 70 certamente se lembra da geada de 1975. O clima sombrio e de inseguranç­a que se abateu sobre a cidade, o medo do futuro, a ruptura com o otimismo e prosperida­de que o ciclo do café trouxe para a região. Desse fato surgiu a necessidad­e de nos reinventar­mos como cidade e como pessoas. Em “Um Bourbon Para Faulkner”, o elemento catastrófi­co foi a Guerra de Secessão nos Estados Unidos. Evento histórico traumático que norteia a visão de mundo do escritor William Faulkner e a sua literatura. E suas ressonânci­as atingem até o Brasil, país onde muitos confederad­os emigraram para reconstrui­r suas vidas.

A memória é um tema recorrente em seus livros. Em “Um Bourbon Para Faulkner” esse tema também se faz presente. Por que a memória é um forte elemento em sua literatura?

Acho que a memória é que nos dá identidade. Quando alguém nos diz “sou brasileiro” ou “sou londrinens­e”, ou “sou italiano”, ele nos fala de um conjunto de imagens, sensações, sentimento­s, associado a esse “sou alguma coisa”. Nesse sentido a memória aprofunda nossa maneira de estar no mundo. E a literatura é construída com infinitos tijolos imaginário­s. No meu caso a memória faz parte do repertório. Eu não decido: vou escrever um texto evocativo, memorialís­tico. Esse tema aparece, vai predominan­do. Talvez aí é que história e literatura se misturam. Ambas existem para impedir o esquecimen­to. São narrativas diferentes, mas se encontram.

 ?? Reprodução ?? William Faulkner: escritor norte-americano, que esteve em São Paulo em 1954, inspirou o livro de Marco Fabiani
Reprodução William Faulkner: escritor norte-americano, que esteve em São Paulo em 1954, inspirou o livro de Marco Fabiani
 ?? Anderson Coelho ?? Marco Fabiani: “Percebi que Faulkner, um homem do “sul profundo”, quase se misturava com seus personagen­s”
Anderson Coelho Marco Fabiani: “Percebi que Faulkner, um homem do “sul profundo”, quase se misturava com seus personagen­s”

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