Folha de Londrina

Quando levantamos dentre os mortos

- Fale com o colunista: avenidapar­ana@folhadelon­drina.com.br

Era quase meia-noite quando eu encontrei o Francisco numa esquina da Rua Paranaguá. A chuva havia cessado poucos minutos antes; o chão estava úmido. Francisco aproximou-se com o andar indeciso e trôpego dos moradores de rua, sorriu e pediu dinheiro para tomar “um corote de cachaça”. Ele perguntou a minha profissão e eu lhe disse. Notei que suas mãos e unhas estavam sujas, como as de todos os que vivem na rua, mas também chamuscada­s pelo uso contínuo da pedra. Nos pés, apenas um chinelo de dedo. Sentia-se de longe o hálito da bebida.

Enquanto Francisco falava sobre sua vida nas ruas, percebi que as suas frases eram bastante articulada­s. Perguntei: - Você tem instrução, Francisco? - Ensino médio completo. Lançou-me um olhar inquisitiv­o.

- Você conhece o grande pedagogo Paulo Freire?

- Sim, conheço.

- Pois graças a ele consegui estudar. Ah, se o Brasil soubesse como o Paulo Freire é respeitado no mundo inteiro... E ele era marxista, sabia? Marxista! Seu grande mestre foi Makarenko, o educador de Stálin. Paulo Freire! Admiro muito esse homem.

Imediatame­nte, Francisco se lembrou das eleições (faltavam apenas três dias para o segundo turno). E declarou que, se soubesse onde estava seu título de eleitor, votaria em Fernando Haddad.

- Conheci o Haddad na minha época de militância, em São Paulo. É um homem sério, que vai tirar o Brasil da miséria, vai taxar os ricos e distribuir a renda para a população pobre. Esse outro aí, a gente sabe: logo vem com aquela política de privatizaç­ões...

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Depois que o Francisco se despediu, rumo à noite fria dos usuários de crack, lamentei não ter perguntado a sua idade. É bem provável que ele pertença à minha geração, a geração perdida. A geração que viu o PT nascer, crescer, governar e se revelar em toda sua monstruosi­dade. A situação desesperad­ora em que aquele pobre homem se encontra hoje foi toda desenvolvi­da ao longo da era petista, e ele ainda acredita que o Partido-Estado é a solução para seus males.

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Naquela mesma noite, uma amiga me perguntou:

- Paulo, qual é o sentido da sua vida? Não quis dar uma resposta óbvia o amor, o trabalho, a família. Pensei um pouco e disse:

- O sentido da minha vida é limpar os crimes e pecados que eu mesmo cometi.

Para Deus, não existe passado, nem presente, nem futuro. Ele vive na eternidade, é a eternidade consiste na “posse simultânea de todos os instantes”, no dizer de Boécio. Se eu não abrisse os olhos para a realidade, seria hoje exatamente igual ao Francisco: vagando pelas ruas, drogado, bêbado, sujo, mendicante... e elogiando o PT!

Mas talvez um dia ele acorde também.

Eu poderia estar como o Francisco: vagando pelas ruas, drogado, bêbado, sujo, mendicante... e elogiando o PT!

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