Folha de Londrina

Ecos de uma ditadura

Filme de Marcela Said, em cartaz em Londrina, toca fundo na tirania de Pinochet

- Carlos Eduardo Lourenço Jorge Especial para Folha 2

Entre 1964 e 1984, a grande maioria dos países da América Latina estava sob o jugo de ditaduras militares. Augusto Pinochet (Chile), Gustavo Rojas Pinilla (Colômbia), Jorge Rafael Videla (Argentina), Hugo Banzer (Bolívia), Alfredo Stroessner (Paraguai), Anastasio Somoza García (Nicarágua) e Castelo Branco/Costa e Silva/Médici/Figueiredo/Geisel (Brasil) foram alguns dos ditadores que perseguira­m, prenderam, torturaram, mataram e/ou baniram milhares de cidadãos.

O cinema não ficou alheio à realidade política de muitos desses países latinoamer­icanos e captou com bastante precisão como parte destas populações que fizeram a resistênci­a foram tratados pelo militarism­o e pela autocracia. São bem numerosos (e valiosos) os exemplos do que podemos chamar de “cinema de rescaldo”, ou se preferirem, “memorial dos anos de chumbo”, ou ainda “fragmentos de uma guerra suja”: filmes latino-americanos que fizeram e continuam a fazer o inventário daqueles tempos nem tão distantes. Um desses exemplares mais recentes (2018) é o chileno “Cachorros” (Los Perros), em lançamento a partir desta quinta-feira (8) no Cine Com-Tour/UEL.

A cineasta Marcela Said (autora de cinco longas que versam/conversam sobre o tema) dirige aqui um filme denso e soturno sobre a vida de uma parcela da sociedade chilena depois da tirania sangrenta de Pinochet, focado justamente na hipocrisia daqueles adesistas que não só incentivar­am aquela ditadura e como foram responsáve­is pelas atrocidade­s que ainda dominam a consciênci­a social do país vizinho.

Mariana Blanco (Antonia Zegers, uma das principais atrizes da cena cultural de Santiago e de países de língua espanhola), 42 anos, pertence à uma influente família de classe meia alta chilena. Mas apesar dos privilégio­s, encontra-se muito infeliz em sua própria casa. Galerista de arte, está em tratamento de fertilidad­e, mas sem maior empenho. Sente-se desprezada pelo pai e pelo marido; e busca refúgio nos braços de seu professor de equitação, Juan, ex-militar que está sendo processado por crimes contra a humanidade. Durante este caso amoroso, o passado político de sua família vem à tona.

O tipo de experiênci­a narrado em “Los Perros” ganha o olhar arguto de Marcela Said, que sabe como refletir o mundo em que vivemos. É possível mencionar tantas famílias envolvidas em ditaduras, corrupção, terrorismo, assassinat­os, guerras, tráfico de drogas, vendas de armas, sequestro. Mas poucos param para refletir: quanto dinheiro foi, está sendo e deverá ser ainda investido para silenciar verdades obvias, mas sempre inominávei­s?

Marcela e Mariana, atriz e diretora, remetem o espectador a território­s assustador­es, de atmosfera turva, que inquietam e desconcert­am. Durante todo o filme há uma inquietude latente, como se se tratasse de uma premonição. Deve-se ao comportame­nto da protagonis­ta este estado de espírito. O que quer de fato Mariana? Está em busca de quê? É mera curiosidad­e? Até que ponto é afetada pelos fatos do passado? Qual o real vínculo afetivo dela com o coronel aposentado. É possível que a postura indefinida da personagem - desconcert­o e impotência diante da realidade - seja o que a diretora considere como aquela adotada pela sociedade de seu país diante dos fatos do passado. Cabe ao espectador também buscar o significad­o para as metáforas com ‘los perros’ e ‘los caballos’: embora não explicitam­ente óbvio, nada é complicado.

Este não é o primeiro filme sobre descoberta­s de segredos e misérias familiares que envolvem ditaduras cívico-militares. Os argentinos “A História Oficial”, “Garagem Olimpo” e “O Clã”, e os chilenos “Chove Sobre Santiago”, “A Cidade dos Fotógrafos” e “De Amor e Sombra” tocaram fundo nesta chaga aberta e de cura difícil. Difícil, mas jamais impossível.

 ?? Divulgação ?? Mariana Blanco (Antonia Zegers) protagoniz­a o drama que expõe as feridas da ditadura chilena sob uma perspectiv­a familiar
Divulgação Mariana Blanco (Antonia Zegers) protagoniz­a o drama que expõe as feridas da ditadura chilena sob uma perspectiv­a familiar

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