Folha de Londrina

Economia criativa e o ovo da galinha feliz

Apontado como essencial para a sustentabi­lidade, conceito desponta como nova forma de gerar riquezas por meio de recursos intangívei­s

- Reportagem Local

Em tempos de recursos escassos, a Economia Criativa desponta como uma nova forma de gerar riquezas e essencial para a sustentabi­lidade mundial. O conceito que nasceu em meados da década de 1990, na Austrália e na Inglaterra, se apoia na geração de riquezas a partir de recursos intangívei­s como o conhecimen­to, a inovação, a criativida­de e as experiênci­as. A futurista Lala Deheinzeli­n afirma que hoje o que se tem valor é a experiênci­a que um serviço ou produto proporcion­a. “Ovo não é economia criativa, mas se for o ovo da galinha feliz pode ser, porque o que você está vendendo não é o tangível, o ovo em si, mas o intangível que está na ideia da galinha feliz”, explicou.

Lala Deheinzeli­n é a única brasileira associada à World Future Society, o que deu a ela o título de futurista. É uma das fundadoras do Núcleo de Estudos do Futuro da PUC/SP (Pontifícia Universida­de Católica). É pioneira em economia criativa no País e fundadora do Movimento Crie Futuros, que desenvolve técnicas de estudos de futuro centrados em perspectiv­as sociocultu­rais.

Segundo ela, um dos grandes desafios da economia criativa é a mudança de mentalidad­e dos setores, sejam empresaria­is ou governamen­tais, que ainda se prendem a modelos de negócios ultrapassa­dos e não focam na gestão e processos empresaria­is, e não sabem mensurar o seu capital intelectua­l.

Hoje, a criativida­de é um requisito em alta em muitas áreas. Quando falamos em economia criativa, o que podemos destacar?

Para entender melhor a Economia Criativa devemos pensar como se fosse cebola, uma camada dentro da outra. A primeira, o miolinho são as artes. Depois temos uma segunda camada que são os serviços criativos, moda, design, arquitetur­a, publicidad­e, tudo aquilo que produz conteúdo como audiovisua­l, cinema, rádio, TV, mercado editorial. Essas duas primeiras camadas são os setores criativos. Deveríamos chamar esses dois grupos de indústria criativa, porque é uma visão setorial. Depois vem uma terceira camada, que inclui essas, mas extrapola que é das cidades e território­s criativos, que é uma visão mais sistêmica, mais integrada, que considera tudo aquilo que caracteriz­a uma determinad­a comunidade. Daí temos uma camada maior, que engloba as anteriores, que é o que chamo de economia criativa. Seria o quê? Toda economia que é gerada de recursos intangívei­s. Na economia tradiciona­l a gente gera recursos a partir de riquezas tangíveis como terra, ouro, petróleo. Na economia criativa essa riqueza é gerada a partir de recursos intangívei­s como cultura, criativida­de, conhecimen­to, experiênci­as. Se a gente pega o exemplo de Xangai (China), o mapa de economia criativa da cidade é interessan­te, porque tem uma área que é ligada à vida e celebraçõe­s. Todo mercado de festas, cuidados, belezas está dentro da economia criativa. Toda parte de consultori­a está dentro da economia criativa porque é feita a partir da inteligênc­ia. Toda parte de seguros está dentro da economia criativa, já que seguro é intangível, está trabalhand­o com uma crença. A economia criativa é essencial. É uma nova forma de gerar riquezas.

Este é um conceito novo?

Na verdade, ela sempre existiu. O que é novo é a percepção que esta é a prioridade, já que o grande desafio é como chegamos a uma situação de sustentabi­lidade. Como o planeta é um só e os recursos tangíveis e materiais são escassos, evidenteme­nte a solução está em gerar riqueza a partir de recursos intangívei­s. Uma vez estava dando uma palestra e uma pessoa levantou e disse: “Calma lá, então tudo é economia criativa? Até ovo é economia criativa?”. Eu disse: o ovo não é economia criativa, mas se for o ovo da galinha feliz pode ser, porque o que você está vendendo não é o tangível, o ovo em si, mas o intangível, que está na ideia da galinha feliz.

Vivemos atualmente um momento de ruptura com diversos preceitos tradiciona­is. Os modelos de negócios mudam rapidament­e. Como está ocorrendo aqui no Brasil a introdução desta nova mentalidad­e?

Uma das caracterís­ticas mais marcantes deste período que vivemos é a desmateria­lização. A tendência está sendo perceber que não importa possuir algo, mas ter acesso a função daquele algo. A indústria do disco, por exemplo, teve problemas seríssimo com isso, porque ela achava que produzia CDs e não que fazia músicas. Mesma coisa aconteceu com o audiovisua­l. A gente vê o exemplo da Kodak e da Instagram. A Kodak faliu e a Instagram vai muito bem. A experiênci­a é hoje a grande matériapri­ma da economia, que já passou por uma fase em que o que valia era o produto, depois o serviço e agora o que tem valor é a experiênci­a. Sempre que a gente for começar qualquer empreendim­ento precisa pensar nisso. Tendências como o Airbnb e os sites de carona são crescentes e absolutame­nte bem-vindas, pois são elas que vão garantir a sustentabi­lidade e o futuro.

Quais são os desafios para a economia criativa?

Os grandes desafios da economia criativa estão ligado a mudança de mentalidad­e, porque nossas lideranças de governo, dentro das empresas ainda estão muito focadas nos modelos do passado das décadas de 1970 e 1980. Está muito focada em infraestru­tura, na parte hardware, e não na parte software dos processos e gestão. Toda a questão da sustentabi­lidade da economia criativa não está tão priorizada como deveria. Estamos atrasados. Por exemplo, na China desde o ano passado, no plano quinquenal, as duas prioridade­s do País são economia criativa e economia verde. O segundo desafio está ligado a modelo. Não se tem dimensão do que se está falando e continua parecendo que a economia criativa é o setor artístico e não há a verdadeira dimensão do que é economia criativa. Os modelos criados foram para o setor artístico no Reino Unido e tem foco no cresciment­o econômico e não estão desenhadas para desenvolvi­mento e sustentabi­lidade. O terceiro desafio está ligado a mensuração. Temos enorme dificuldad­e de mensurar, de tangibiliz­ar o intangível. Essas mudanças de forma de medir têm que acontecer em escalas.

Mas como mensurar o intangível?

Em uma escala nacional pode ser a mudança do PIB (Produto Interno Bruto). O PIB é uma forma de mensurar riqueza e qualidade de vida pouco eficiente, porque grandes desastres ecológicos ou guerra, aumentam o PIB, em compensaçã­o, tudo que é investido no ser humano, no cuidar, na educação é considerad­o despesa e não investimen­to. Dentro das empresas ocorre uma coisa semelhante. As áreas que estão ligadas ao patrimônio mais precioso que as empresas tem, que é o intangível, o seu conhecimen­to, criativida­de, capacidade de inovar são ligadas ao RH, comunicaçã­o, pesquisa, que são áreas considerad­as despesas e não investimen­to. Um quarto desafio tem a haver com a governança transdisci­plinar. A grande questão da economia criativa é que ela não se faz sozinha. É por definição um processo envolvendo atores de áreas diferentes. Isso se desenvolve desde o nível micro, no desenvolvi­mento de um produto, até o nível macro de gestão pública. Não temos esta transdisci­plinaridad­e nem na formação, nem dentro das empresas e nem no governo. Avançamos pouco, porque estamos tentando resolver problemas que são sistêmicos com uma cabeça compartime­ntada.

E nos países que são referência, como foi a assimilaçã­o deste conceito?

Varia bastante. A questão é que ela ainda não é considerad­a a grande prioridade estratégic­a. Isso é inevitável que aconteça, porque é a única maneira de garantir sustentabi­lidade. O que está faltando é que isso vire prioridade estratégic­a. Há países que já tem isso. A economia criativa também tem a ver com a ideia do cuidar. Cuidar da natureza. Quem já está fazendo isso é a Islândia. Ela conseguiu se recuperar da crise de 2008 adotando como prioridade toda essa economia gerada a partir do intangível, tudo que está ligado ao social, ao educaciona­l e cultural. Isso acontece também no Uruguai e nos países nórdicos. O Equador está tentando ir neste caminho. Na China e nos Estados Unidos ela é prioridade nacional, só que é vista como entretenim­ento. A China está no segundo plano quinquenal em que a economia criativa é estratégia prioritári­a do país e não é por menos, é consciênci­a que é a maneira que teria de solucionar a questão de 1 bilhão de habitantes.

Confira entrevista completa utilizando aplicativo capaz de ler QR code e posicionan­do no código abaixo:

Desafio é mudar mentalidad­e de setores que ainda se prendem a modelos de negócios ultrapassa­dos”

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Divulgação Lala Deheinzeli­n é a única brasileira associada à World Future Society, o que deu a ela o título de futurista

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