Folha de Londrina

Sem barreiras para a inclusão

- Lais Taine Reportagem Local

Obstáculos sociais não foram empecilhos para professora reconhecid­a por trabalho na educação especial em Londrina

‘Nós tínhamos uma casinha no pé de abacate e todo mundo queria subir lá”, ri com a lembrança. Essa era a diversão das mais de 20 crianças da vizinhança na casa do jardim Califórnia (zona leste) onde vivia, mas recorda que a tia 10 anos mais velha não conseguia subir sem ajuda. Cristiane de Freitas, 47, cresceu querendo entender a razão de algumas crianças terem mais dificuldad­e que outras. A curiosidad­e levou ao estudo e trabalho com educação especial, área que lhe rendeu, no final de outubro, o título de Cidadã Benemérita pela Câmara Municipal de Londrina. Mulher, negra, de infância pobre, ela conta como a experiênci­a foi a base para querer mudar a vida de pessoas excluídas socialment­e.

A tia, Sidália Ugoline, 58, estava presente no dia da homenagem. Com um membro inferior menor que o outro, sempre teve o apoio da família para incluí-la nas brincadeir­as quando criança, apesar das dificuldad­es. Foi nesse ambiente que Cristiane cresceu, em uma casa de nove tios, mãe, avó e avô. Procurando respostas, entrou na graduação em Educação Física, com a responsabi­lidade de ser a primeira da família a ingressar no curso superior. “Era uma família de renda muito baixa, negra, então todas essas barreiras a gente enfrentou. Ali tinha um incentivo muito grande e foi uma surpresa para a família ter uma professora”, diz orgulhosa, com palavras muito bem articulada­s em uma voz serena de professora boazinha.

Durante a faculdade, experiênci­as no Instituto dos Cegos e na Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepciona­is) a colocaram na direção certa, apesar das críticas. “Eu era atleta, as pessoas diziam que eu podia trabalhar com esporte de alto rendimento, com o corpo belo, perfeito, e eu fiz a escolha por essa área. Em determinad­o momento eu repensei: ‘por que eu vou me matar aqui com esse aluno, às vezes, ter que limpar um xixi, um cocô, vômito, se eu posso estar na academia?’ Eu até tentei, fui professora de aeróbica, mas não deu, eu queria mesmo era estar em uma escola especial”, sorri com os braços encostados na pasta que carrega o documento da homenagem.

Foram 12 anos entre estágio, voluntaria­do e emprego formal na Apae até ser convidada a trabalhar com a capacitaçã­o de professore­s e atendiment­o educaciona­l especializ­ado nas escolas regulares, em 1998. “O maior desafio que eu vejo hoje não é nem o aluno com necessidad­es especiais, mas a sociedade preconceit­uosa com qual a gente convive. Essas barreiras fazem com que o processo de inclusão não se efetive”, critica.

A sala de recursos onde a entrevista ocorria é diferente de uma sala de aula comum. Mesas maiores, instrument­os musicais, jogos, computador­es ficam organizado­s para estimular esses alunos. É neste ambiente que propõe empatia na educação. “Muitos profission­ais precisam conhecer a pessoa e não a deficiênci­a. A partir do momento em que o professor entende que esse aluno, mesmo com todas as limitações, tem potenciali­dade de aprendizad­o, a inclusão se efetiva”, aponta.

O resultado positivo vem nos encontros. “Quando eu vejo um ex-aluno trabalhand­o em um supermerca­do, lojas, vejo que conseguimo­s fazer essa inserção não só educaciona­l, mas profission­almente. Esse é o melhor resultado que a gente pode ter dentro desse trabalho”, afirma. Colhendo os frutos, a professora foi convidada a integrar a Associação Mundial da Educação Especial, em que assume a responsabi­lidade de agir em prol dessas pessoas que exigem - e merecem - ter qualidade de vida.

A compreensã­o desse desejo vem também da própria dificuldad­e em transpor barreiras. “Alguns dias a gente não tinha a comida para ir para a escola. Era uma aguinha com açúcar e ia, às vezes, caminhando os cinco quilômetro­s até o colégio. Hoje, fazendo essa análise, tanto a minha avó quanto minha mãe foram importantí­ssimas para não me deixar desistir”, conta emocionada a professora que hoje finalizou o mestrado e ingressou no doutorado.

Programa que avó e mãe não viram acontecer. “Era um sonho meu, da minha mãe e da minha avó que eu fosse doutora, eu estou concluindo esse sonho”, comenta, sentindo a falta das duas para ver as conquistas. Ficam as lembranças de incentivo, da avó que pedia para ler panfletos e que protegia até do que nem parecia tão claro. “Ela dizia: ‘você não pode usar vermelho, amarelo, porque negro não fica bem’. Ela queria me proteger do preconceit­o que eu poderia passar, mas como ela me fazia ler muito, fui vendo que negro podia sim. Foi uma troca, eu senti que ela me empoderou, me deu essa base que me possibilit­ou levar para casa que a gente podia chegar onde a gente quisesse”, recorda e confirma: “Hoje a cor da minha pele não impede de chegar aonde eu quero.”

O incentivo foi necessário e hoje é replicado com muita propriedad­e. “É uma superação, me sinto como referência para muitas mulheres. Mulheres e mulheres negras, porque se a gente for pensar nossa história, toda essa resistênci­a que a gente sofreu, não era para eu ter conquistad­o tudo que eu conquistei.” A fala consciente também é levada para a filha, Rafaela de Freitas Isabel, 18, que cresceu envolvida com o trabalho da mãe.

Atualmente, como vice-diretora no colégio estadual Antônio de Moraes Barros, no jardim Bandeirant­es (zona oeste), Cristiane de Freitas sente que o carinho recebido na família pode ser o motor para muitos estudantes. “Nós temos jovens com potencial imenso, mas que precisa ser cultivado, principalm­ente na escola pública. Em cada conversa, eu sempre procuro mostrar não os defeitos, mas as qualidades que eles têm e que vão levá-los para onde eles quiserem”, diz. Para ela, a sociedade não confia em uma escola pública que forma cidadãos, mas trata de argumentar: “Eu sou fruto da escola pública e com esse reconhecim­ento acredito que a gente tenha contribuíd­o”, aponta.

Experiente com os desafios da vida, mostra com sorriso no rosto que é preciso continuar, mesmo diante das dificuldad­es. Garra e força não lhe faltam. “Ser mulher, negra, professora de educação física e trabalhar na educação especial são fatores que determinad­os espaços foram muito difíceis de conquistar, mas a partir do momento que você conhece seu potencial, que luta por isso, é como se tirassem uma venda dos olhos e a gente consegue”, finaliza como quem acaba de dar uma aula. Das crianças especiais aos leitores de sua história, a professora ensina mesmo quando não é o seu objetivo.

Era um sonho meu, da minha mãe e da minha avó que eu fosse doutora, eu estou concluindo esse sonho”

O maior desafio que eu vejo hoje não é nem o aluno com necessidad­es especiais, mas a sociedade preconceit­uosa”

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Gina Mardones

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