Folha de Londrina

Quem é o quê?

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Não existem indivíduos fora da sociedade e de seu tempo - e não existe sociedade republican­a e democrátic­a que favoreça apenas mínima e abastada parcela de seus indivíduos"

Há quem diga que consciênci­a não tem cor. Segundo essa lógica, é possível que ela também não apresente peso nem envergadur­a. Assim como já se afirmou que não existem sociedades, apenas indivíduos, é razoável imaginar que aqueles que defendem incongruên­cias nos temas de gênero e classe social estejam cobertos de razão. Toda sorte de preconceit­o, segregação e ódio seria, no limite, história inventada por quem não tem o que fazer. A desigualda­de, portanto, não passa de ardilosa ilusão.

O tempo, contudo, é habilidoso em predições. A ideia de república, um dia, já foi absurda. Hoje, poucos se declaram saudosos de reis e rainhas. A democracia, vista com desconfian­ça por liberais e socialista­s em inúmeros momentos, tem sido exaltada como valor universal. Sabe-se, entretanto, que republican­os e democratas de fachada estão por aí em maior quantidade. É prudente pressupor que os que se dizem sem ódio nem preconceit­os se encontram na mesmíssima condição de mera aparência, cuja semelhança com a realidade não será jamais inocente coincidênc­ia.

Se o preconceit­o (de raça, gênero e classe) e as manifestaç­ões de intolerânc­ia e desrespeit­o pululam em toda par- te, como entender que ninguém se declare seu agente? Por que, na regra geral, todos são republican­os e democratas e, na existência cotidiana, sobram pequenas porções de exclusão, que variam de piadas que estigmatiz­am a atitudes que ampliam abismos entre diferentes e desiguais? Uma conta não fecha nessa história: como experiênci­a civilizató­ria, na esfera das palavras e intenções declaradas, a vida contemporâ­nea resvala a perfeição; como prática social efetiva, de maneira perturbado­ra, o mergulho na barbárie é recorrente.

A vergonha de expor aquilo que realmente se é explica muita coisa. Declarar-se abertament­e racista ou homofóbico? Admitir nutrir sentimento­s de superiorid­ade em relação a alguém? Pregar lugares e papéis fixos para este ou aquele grupo social? Afirmar-se defensor da velha ordem, de privilégio­s de castas, de valores responsáve­is, na história, por horrores e genocídios? Nenhuma resposta afirmativa soaria bem na atual “civilizaçã­o de aparências”. Todos, portanto, são pessoas “de bem”. Ainda que a bajulação, a censura e o desejo de exterminar o outro estejam na fronte, é recomendad­o que se diga: “Sim, eu sou um democrata e desejo viver pacificame­nte em meio à diversidad­e”. As evidências dizem o contrário, mas, como já se sabe, os julgamento­s agora se dão por convicção - as provas estão dispensada­s.

Rememorar Zumbi dos Palmares e seu heroico quilombo é colorir a consciênci­a, dar-lhe peso e sugerir que haja conteúdo crítico no senso moral que dirige juízos e ações. Da mesma maneira, honrar a luta das mulheres e dos indígenas (de todos os subalterni­zados) por visibilida­de e novos mundos significa negar a “neutralida­de” do processo civilizató­rio e condenar a ideia de que o progresso só caminha para o alto. Erguer bandeiras que exijam memória e justiça é não fugir à responsabi­lidade de pensar historicam­ente e, ao mesmo tempo, colocar-se junto àqueles a que foram negados pão, terra e liberdade.

Não existem indivíduos fora da sociedade e de seu tempo e não existe sociedade republican­a e democrátic­a que favoreça apenas mínima e abastada parcela de seus indivíduos. Aqueles que insistem num mundo de poucos e para poucos, revalidand­o a negação do outro diariament­e, são eternos extemporân­eos da verdade.

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Tânia Rêgo/Agência Brasil/20-11-2017

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