Folha de Londrina

O testamento do Soldado Wagner

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Querida Mãe,

Se a sra. estiver lendo estas linhas, é sinal que não voltarei para casa.

Dias atrás, cheguei do Batalhão muito cansado e adormeci na sala, diante da televisão ligada no canal de desenhos. Naquela noite eu tive um sonho muito estranho. Uma motociclet­a corria ao meu encontro no escuro da noite. De início, eu só podia ouvir o ronco do motor e a luz alta do farol, como se fosse o olho de um gigante na escuridão. Quando a moto chegou bem perto, eu pude ver os dois homens encapuzado­s. O de trás sacou uma pistola e me deu dez tiros. Dez: o mesmo número dos mandamento­s.

Depois do sonho, resolvi escrever. Não deixarei grandes bens materiais nesta vida, mas mesmo assim gostaria de fazer um pequeno testamento. Como último favor, Mãe, peço que o mostre a todos que citarei aqui.

A você e ao Pai, deixo meu amor e respeito. Em vida, quase tudo que eu ganhava ia para vocês. Agora não será diferente. Tudo que é meu lhes pertence, a começar pela farda que procurei honrar todos os dias. Cuidem um do outro, saibam que estarei por perto, vigiando.

Aos amigos da Corporação, deixo as minhas lembranças. Tudo que fiz, desde o dia em que entrei para a polícia, fiz de coração sincero. Lembro-me dos primeiros dias na Academia, quando o Sargento me dava as mais diversas tarefas: capinar as datas, catar as folhinhas das árvores, limpar os alojamento­s, pagar flexões, correr, assistir às aulas. Como eu estava cabeludo no dia em que apresentei, o Capitão perguntou meu nome. Eu gaguejei um pouco e disse:

- Wa... Wagner, senhor.

- Wagner, não vou me esquecer.

É o nome do meu irmão.

Vocês também nunca me esqueceram, amigos. Quando tiverem alguma dificuldad­e, quando precisarem cumprir uma missão, por menor que seja, lembrem-se do Soldado Wagner. Eu era apenas um soldado, não realizei grandes feitos, mas tentei cumprir bem todas as pequenas missões que me foram dadas.

Nunca fui de muitas palavras, por isso peço desculpas se alguma vez deixei de dizer algo que vocês precisavam ouvir. Acho que um testamento também serve para pedir perdão, caso tenha feito algum mal.

Às crianças com quem eu gostava de brincar e de vez em quando trocar figurinhas do Pokemón, deixo meu pedido de desculpas. Desculpem por não me vestir de Papai Noel neste Natal (o Batalhão encontrará um substituto); por não participar mais das jornadas de trânsito nas escolas; por não visitar mais as salas de aula e perguntar se vocês estão estudando direitinho, se obedecem aos pais, se respeitam os coleguinha­s, se são bons meninos. Deixo-lhes o meu sorriso e meu agradecime­nto, pois só vocês eram capazes de me arrancar da timidez e do silêncio.

Ao povo de Londrina, que procurei servir e proteger da melhor forma, deixo o meu adeus. Um dia nos reencontra­remos.

Wagner da Silva Prado Soldado da Polícia Militar do Paraná.

Eu era apenas um policial. Deixo a vocês minha farda, meu sorriso, minhas lembranças e minha amizade

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Acervo/5º BPM

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