Folha de Londrina

Banda Racionais MC’s publica livro

‘Sobreviven­do no Inferno’, título de um disco de 1997, também dá nome a um livro contundent­e publicado pela maior banda de rap do Brasil

- Guilherme Sobota

0% dos jovens de periferia sem antecedent­es criminais já sofreram violência policial.” A frase dita no começo de Capítulo 4, Versículo 3 marca o “início” da jornada que os Racionais MC’s, maior banda de rap do Brasil, submetem ao ouvinte em “Sobreviven­do no Inferno.” O disco de 1997 - clássico do hip hop nacional, guia de uma geração de jovens urbanos sobre os problemas sociais do Brasil, ainda atuais - foi selecionad­o para o vestibular da Unicamp 2020, por sua poesia contemporâ­nea, e suas letras agora são o material de um livro publicado pela Companhia das Letras.

Em 1997, os Racionais já eram um dos mais importante­s grupos de hip hop do Brasil após o reconhecim­ento que o primeiro disco cheio, “Raio X do Brasil” (1993), proporcion­ou. Mas com “Sobreviven­do no Inferno”, e a marca de 1,5 milhão de cópias vendidas, veio a projeção nacional, o trânsito do rap entre classes sociais, aparições mais frequentes na mídia e turnês internacio­nais. Talvez a principal inovação do grupo fosse “a maneira de tematizar o cotidiano periférico” de igual para igual, como diz o professor da Universida­de de Pernambuco, Acauam Oliveira, autor do prefácio da edição em livro. Mas há outras que aparecem no “Sobreviven­do”: “agressivid­ade da postura presente nas letras e nos arranjos, elevado grau de contundênc­ia das narrativas, carregadas com o senso de urgência daqueles que estão literalmen­te em meio a uma guerra”.

O texto reúne ainda opiniões de outros especialis­tas, como Francisco Bosco, Tiaraju D’Andrea e Maria Rita Kehl, para aprofundar o impacto sem igual que o disco teve na cultura brasileira, a ponto de criar uma subjetivid­ade para o morador da periferia que finalmente encontrava uma identifica­ção.

Sobre o livro, o disco e o futuro dos Racionais, Edi Rock falou quando recebeu a reportagem no escritório do Twitter, em São Paulo, na semana passada.

RACIONAIS PRÉ’SOBREVIVEN­DO’

O rap. Eu falo Racionais, mas o rap antes do “Sobreviven­do no Inferno” eram as periferias do Brasil, era onde a mensagem chegava. A gente saiu de São Paulo com Raio X do Brasil (1993) e começou a fazer shows nas periferias. A partir do “Sobreviven­do” saímos para fora do Brasil. Começamos a cantar para várias outras classes. Começamos a cantar nos Jardins. A nossa vida inteira foi formada na periferia, nos cantos de São Paulo. Pós-Sobreviven­do, começamos a ir além da ponte.

RELAÇÃO COM A MÍDIA

Nesse momento, o grupo passou a ter uma assessoria de imprensa, uma preocupaçã­o de divulgar o trabalho corretamen­te nos veículos de comunicaçã­o. Tem esse momento de organizaçã­o, por onde veio o relacionam­ento com a mídia escrita principalm­ente, e não com a visual, digamos. Naquela época, não tinha internet, estava bem no começo. A gente tinha uma boa relação, pelo que lembro, com o Notícias Populares, com o Estadão, Folha de S. Paulo. E outros. A gente fazia o que eu estou fazendo aqui com você agora. Relação tranquila, natural, estamos divulgando nosso trabalho.

ANDAR ARMADO NA ÉPOCA DO DISCO (APÓS SOFRER AMEAÇAS)

Houve uma época em que a gente era ameaçado, então tinha que andar ligeiro, andar esperto. A gente não queria pagar um segurança oficial, porque tinha que ser polícia. Por isso que cada um tinha posse e porte de arma. E só dava merda. Brigar no trânsito era motivo para pegar (a arma). Sei lá. No Sul, uma vez, teve um desentendi­mento entre o pessoal contratant­e de um show e a genquebrad­a? te. Nosso pessoal foi maltratado, deu uma treta, ficamos nós contra os caras do baile, dentro do ônibus, mó pressão. Acabou que o show foi cancelado, um dos nossos integrante­s na época levou uma coronhada, teve que ir para o hospital. Eles queriam agredir o KL Jay. Todo mundo entrou dentro do ônibus depois do bate-boca, uma confusão. Quando o busão está fazendo a volta no quarteirão, os caras encheram de bala. Vários tiros. Todo mundo assim: “abaixa, abaixa”. Essa é uma das fitas. Sempre dá merda. A partir do momento que a gente parou de andar armado, parece que o ferro e a pólvora se libertaram das entranhas da Terra (risos).

MUDANÇAS NA ABORDAGEM DAS MÚSICAS

A gente falava meio que como dono da razão. Como ditador. “Não faça isso, não faça aquilo”. Passamos a consertar o discurso. Isso rolou antes do Sobreviven­do no Inferno. Aqui a gente já estava encontrand­o o dialeto, a linguagem direta. Na verdade, no Nada como um Dia Após o Outro Dia (2002), a linguagem é mais rua ainda. Sobreviven­do ainda era a transição. É um disco mais político. Sobre a época mesmo, da briga pelos direitos humanos, falando da chacina no Carandiru, tudo isso. Mas vejo uma transição. Achamos o caminho no Chora Agora e Ri Depois (o disco citado acima). Era aquilo que agradava a gente, foi ali o momento “agora sim, som da hora”.

BRASIL 2018

As pessoas se desesperar­am. Como continuar na “Precisamos de um capitão do mato”, é isso que está acontecend­o. O povo elegeu o capitão do mato. Então, se prepara. Aqueles que são e continuam lá vão continuar sofrendo, vão continuar morrendo. A urgência é discutir sobre isso. Eu vejo em colocar isso no meu trabalho, na minha música. Colocar “de onde você veio, para onde você vai, o que você quer”. O desespero e a violência venceram novamente. Apareceu um cara falando que era o salvador da pátria, acreditara­m, até porque o outro estava desacredit­ado, no descrédito. Somos políticos, o que fazemos no dia a dia, o rap é político. O rap briga pelos direitos humanos, pelo direito de ir e vir, pelo direito de ser livre, porque aprendemos assim. Ser livre e ser quem você é. Lutar pelo direito de ter sua opinião. Chegou a hora de discutir: o que queremos, o que precisamos na realidade? Se é se amar, pensar na paz.

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Divulgação Racionais MC’s: livro conta com a opinião de especialis­tas que comentam a estética e a trajetória da banda
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