O tamanho da fome
Brilhante, doloroso, obscuro, agitado, disperso, habitado por gente solitária transitando por paisagens asfixiantes e pequenos espaços fechados, último refúgio de seus personagens. Assim é o cinema do sulcoreano Lee Chang-dong (na verdade, Chang-dong Lee), transparente como a vida. Melhor dizendo: transparente e a um só tempo misterioso e vago como a vida em si. Seus filmes são dramas intimistas retratados com extrema sensibilidade, histórias mínimas que vão encorpando até transbordar os limites do relato e nos fazer parte da história, tanto quanto parece ser universal. É tempo de agarrar a oportunidade e conhecer este autor muitíssimo interessante, diretor entre outros de “Poesia”, já lançado no Brasil, e de “Uma Garota à Porta”, lançamento em breve. Seu título mais recente, “Em Chamas”, está em exibição em Londrina até sábado (1).
O argumento de “Buh-Ning” (o original coreano é muito parecido com “Burning”, o título que recebeu em inglês) é baseado em conto de Haruki Murakami, que por sua vez se baseou em outro relato assinado por William Faulkner. São três personagens. O entregador Jongsu reencontra casualmente uma colega, Haemi. Ele aspira a ser escritor, ela quer trabalhar com arte e por ora vive de pequenos expedientes. Ele é um tipo tristonho de sonhador, embora determinado; ela é uma jovem sem maiores ambições ou conhecimentos.
O roteiro contempla com naturalidade e numerosas elipses a evolução desta relação ordinária. Até que Haemi anuncia uma viagem para a África e pede que na sua ausência Jongsu cuide de seu gato, que nunca é visto em cena. Na volta, ela pede que Jongsu a busque no aeroporto. Com ela chega Ben, jovem rico e sem ocupação definida que ela conheceu na África. Parecem namorados, o que incomoda Jongsu. A partir deste momento, o trio vai estabelecer uma relação ambígua, oscilando entre a admiração e a inveja, a amizade calma e o ciúme.
Lee Chang-dong vai então monitorar os dois rivais (?) a meia distância, evitando juízos de valor e se mantendo sempre em compasso de narração naturalista. A direção, no entanto, vai aos poucos introduzindo pequenos incidentes que ameaçam romper o equilíbrio de Jongsu, em primeiro lugar, e logo do trio: o gato que Jongu deve alimentar mas que ninguém vê, e o gato que mais tarde aparece no requintado apartamento de Ben. O pai agressivo que Jongsu mantém à distância, a confissão do segredo perverso de Ben - queimar estufas de propriedades rurais. Sutilmente aparecem ao espectador os detalhes daquelas três vidas. Misteriosamente, Haemi desaparece sem deixar qualquer traço. É providencial notar como as habitações dos três personagens revelam seu comportamento interior. O contraste entre um espaço e outro marca a ruptura dos sentimentos daqueles três. Cada um deles vai decidir quais limites marcará em relação aos demais.
Lee Chang-dong constrói também um minucioso registro dos gestos, das expressões dos três personagens. A direção de atores é tão precisa quanto o brilho das três interpretações - Yoo Ah-In, Steven Yeun, Jeon Jong-seo. Os três oferecem a riqueza de detalhes mínimos e essenciais. Detalhes, aliás, que vão determinar o curso da narrativa, rica em ilações, pródiga em dúvidas e ambiguidades. Como exercício existencialista, “Em Chamas” (o título do conto de Murakami é “Queimar Celeiros”, no filme transformados em estufas na zona rural) nos fala da necessidade (e tentativa) de cada um se sentir vivo. Como sugere Haemi num dos diálogos, o que se coloca é a fome em uma segunda acepção. A fome menor, a da sobrevivência física, a da necessidade de alimento. E aquela em questão, a grande fome, a existencial, da busca do sentido, do desejo de preencher o cotidiano com um conteúdo autêntico.
Sem precipitações ou subenredos desnecessários, conciso mas sem deixar nada faltando, Lee Changdong monta sua estrutura narrativa com esmero, prestando tanta atenção ao desenvolvimento dos personagens como na interação entre eles, ao espaço, aos diálogos. Cada sequência vai alimentando a anterior, e deixando a seguinte para que o salto entre as cenas seja o mais imperceptível possível. Aqui, Lee Chang-dong surge ainda melhor que Murakami.
Como se trata também de um drama de suspense com crescente (e dosificada) tensão dramática, de uma trama desenvolvida com suavidade, o filme terá conclusão a um só tempo suave a abrupta, provocativa, instigante. A finalização pode levar a diferentes suposições. O que nos leva a crer que há muitas histórias acontecendo ao nosso redor. Não esquecendo que o protagonista é apaixonado pela ficção criativa.