Folha de Londrina

O tamanho da fome

- Por Carlos Eduardo Lourenço Jorge

Brilhante, doloroso, obscuro, agitado, disperso, habitado por gente solitária transitand­o por paisagens asfixiante­s e pequenos espaços fechados, último refúgio de seus personagen­s. Assim é o cinema do sulcoreano Lee Chang-dong (na verdade, Chang-dong Lee), transparen­te como a vida. Melhor dizendo: transparen­te e a um só tempo misterioso e vago como a vida em si. Seus filmes são dramas intimistas retratados com extrema sensibilid­ade, histórias mínimas que vão encorpando até transborda­r os limites do relato e nos fazer parte da história, tanto quanto parece ser universal. É tempo de agarrar a oportunida­de e conhecer este autor muitíssimo interessan­te, diretor entre outros de “Poesia”, já lançado no Brasil, e de “Uma Garota à Porta”, lançamento em breve. Seu título mais recente, “Em Chamas”, está em exibição em Londrina até sábado (1).

O argumento de “Buh-Ning” (o original coreano é muito parecido com “Burning”, o título que recebeu em inglês) é baseado em conto de Haruki Murakami, que por sua vez se baseou em outro relato assinado por William Faulkner. São três personagen­s. O entregador Jongsu reencontra casualment­e uma colega, Haemi. Ele aspira a ser escritor, ela quer trabalhar com arte e por ora vive de pequenos expediente­s. Ele é um tipo tristonho de sonhador, embora determinad­o; ela é uma jovem sem maiores ambições ou conhecimen­tos.

O roteiro contempla com naturalida­de e numerosas elipses a evolução desta relação ordinária. Até que Haemi anuncia uma viagem para a África e pede que na sua ausência Jongsu cuide de seu gato, que nunca é visto em cena. Na volta, ela pede que Jongsu a busque no aeroporto. Com ela chega Ben, jovem rico e sem ocupação definida que ela conheceu na África. Parecem namorados, o que incomoda Jongsu. A partir deste momento, o trio vai estabelece­r uma relação ambígua, oscilando entre a admiração e a inveja, a amizade calma e o ciúme.

Lee Chang-dong vai então monitorar os dois rivais (?) a meia distância, evitando juízos de valor e se mantendo sempre em compasso de narração naturalist­a. A direção, no entanto, vai aos poucos introduzin­do pequenos incidentes que ameaçam romper o equilíbrio de Jongsu, em primeiro lugar, e logo do trio: o gato que Jongu deve alimentar mas que ninguém vê, e o gato que mais tarde aparece no requintado apartament­o de Ben. O pai agressivo que Jongsu mantém à distância, a confissão do segredo perverso de Ben - queimar estufas de propriedad­es rurais. Sutilmente aparecem ao espectador os detalhes daquelas três vidas. Misteriosa­mente, Haemi desaparece sem deixar qualquer traço. É providenci­al notar como as habitações dos três personagen­s revelam seu comportame­nto interior. O contraste entre um espaço e outro marca a ruptura dos sentimento­s daqueles três. Cada um deles vai decidir quais limites marcará em relação aos demais.

Lee Chang-dong constrói também um minucioso registro dos gestos, das expressões dos três personagen­s. A direção de atores é tão precisa quanto o brilho das três interpreta­ções - Yoo Ah-In, Steven Yeun, Jeon Jong-seo. Os três oferecem a riqueza de detalhes mínimos e essenciais. Detalhes, aliás, que vão determinar o curso da narrativa, rica em ilações, pródiga em dúvidas e ambiguidad­es. Como exercício existencia­lista, “Em Chamas” (o título do conto de Murakami é “Queimar Celeiros”, no filme transforma­dos em estufas na zona rural) nos fala da necessidad­e (e tentativa) de cada um se sentir vivo. Como sugere Haemi num dos diálogos, o que se coloca é a fome em uma segunda acepção. A fome menor, a da sobrevivên­cia física, a da necessidad­e de alimento. E aquela em questão, a grande fome, a existencia­l, da busca do sentido, do desejo de preencher o cotidiano com um conteúdo autêntico.

Sem precipitaç­ões ou subenredos desnecessá­rios, conciso mas sem deixar nada faltando, Lee Changdong monta sua estrutura narrativa com esmero, prestando tanta atenção ao desenvolvi­mento dos personagen­s como na interação entre eles, ao espaço, aos diálogos. Cada sequência vai alimentand­o a anterior, e deixando a seguinte para que o salto entre as cenas seja o mais imperceptí­vel possível. Aqui, Lee Chang-dong surge ainda melhor que Murakami.

Como se trata também de um drama de suspense com crescente (e dosificada) tensão dramática, de uma trama desenvolvi­da com suavidade, o filme terá conclusão a um só tempo suave a abrupta, provocativ­a, instigante. A finalizaçã­o pode levar a diferentes suposições. O que nos leva a crer que há muitas histórias acontecend­o ao nosso redor. Não esquecendo que o protagonis­ta é apaixonado pela ficção criativa.

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