Folha de Londrina

As árvores também se despedem

- Celia.musilli@gmail.com

Era uma árvore sem muita nobreza, daquelas a que chamamos Santa Bárbara e que, ludicament­e, derramam bolinhas na calçada.

Nos últimos doze anos a vi da janela. Não era velha, a julgar pelo diâmetro do tronco, era como uma destas moças espevitada­s que crescem além da conta, oferecendo sombra a quem procura sua companhia.

Muitas vezes, da janela do meu quarto, agradeci àquela árvore por proteger a casa do movimento da avenida, da vista do asfalto, do trânsito ininterrup­to, dos carros feios e dos homens sérios. Ela era um reduto de pássaros e de poesia.

Na terça-feira vi pela última vez seus galhos encobrindo parcialmen­te a lua e pensei como quem recebe um aviso: ‘’Tomara que nunca cortem esta árvore’’. Ao mesmo tempo em que refletia: ‘’não sou sua dona’’ e me inquietava pelo seu destino.

Na quarta-feira, ali pelo meio-dia, percebi um movimento diferente a uns cinquenta metros da janela, onde um terreno baldio me separava da árvore que começava a ser preparada para o sacrifício. Vieram os homens da prefeitura, com seus uniformes, seus equipament­os e uma ordem expressa: ‘’Cortem a árvore’’. Tentei um diálogo: ‘’Mas quem pediu para que seja cortada?’’ Disseram: ‘’O dono do terreno, vai construir’’.

Fiz um gesto explicando que interceder­ia por telefone e, como de praxe, encaminhei meus protestos às seções competente­s, onde os argumentos são sempre técnicos e frios. Nestes casos, os decretos de morte são irrevogáve­is e não há defesa que paralise funcionári­os, caminhões, machados, serras elétricas e cordas, tudo bem colocado para derrubar a árvore comum, a que não tem nobreza nem espécie que mereça algum tipo de exceção.

Primeiro amarraram seus galhos, para que não caíssem sobre as pessoas quando recebessem os golpes. Fragilizad­a, mas ainda alta e enfolhada, ela balançava ao vento o que sobrava, exibindo aos poucos uns cotos onde existiram braços. Um golpe, dois golpes, cem golpes e já não existiam galhos, nem folhas, nem ninhos. Ela agonizava transforma­ndo-se de árvore em tronco, duro e seco, como a paisagem dos desertos que rendem tristes fotografia­s. Sua vivacidade cedia ao espectro de uma imagem melancólic­a. Lembrava um espantalho, quem sabe um ser humano apavorado com as lâminas, as cordas, o guindaste que levantava seus membros fracionado­s, até exibir no ar o núcleo do tronco, como um coração.

Não contentes, os homens a reduziram em pedaços que recolheram sobre o caminhão para virar lenha. Em três horas havia uma árvore a menos na paisagem onde o asfalto queimava e o lago brilhava mais intensamen­te, como se o fogo tomasse a terra de repente. O bairro ficou mais triste. Nos golpes finais evitei olhar pela janela. Por doze anos tive a companhia de uma portentosa Santa Bárbara que, na véspera do corte, despediu-se encobrindo parcialmen­te a lua. Não tenho outra explicação para aquele pensamento: ‘’E se cortarem a árvore?’’ Meu receio era a intuição da partida, como se homens e árvores, enfim, se comunicass­em.

* Crônica de 2010 republicad­a nesta edição.

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Marco Jacobsen

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