Folha de Londrina

A folha dobrada é um livro que se fecha. Mas a história de meu pai nunca se fechará para mim

- por Paulo Briguet Fale com o colunista: avenidapar­ana@folhadelon­drina.com.br

Hoje, 21 de dezembro de 2018, faz dez anos que meu pai morreu. É muito difícil viver sem ele.

Semanas antes de sua partida, no dia da última sessão de quimiotera­pia, ele me surpreende­u convidando-me para dar uma volta no lago. Paulo estava incrivelme­nte bem-disposto e até alegre. Enquanto caminhávam­os, pedi que ele me contasse mais uma vez a história do seu vestibular na Faculdade de Direito de São Paulo.

Meu pai chegou a São Paulo com 19 anos, em 1960. Vinha de uma pequena cidade chamada Mirandópol­is e tinha um sonho: cursar a Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Era (e é até hoje) um dos vestibular­es mais difíceis do país.

Instalando-se em um pensionato no Brás, começou a trabalhar como office boy na companhia elétrica estadual. Com a ajuda financeira das irmãs mais velhas, pretendia fazer um cursinho pago à noite.

Certo dia, depois do expediente, meu pai foi até a sede de um famoso cursinho pré-vestibular no centro de São Paulo. Com timidez, disse à recepcioni­sta que gostaria de fazer matrícula.

O diretor do cursinho o recebeu. Empertigad­o atrás da mesa, o homem não demonstrou grande entusiasmo ao ver aquele menino do interior mal saído da adolescênc­ia. Com seu sotaque caipira, Paulo explicou que tinha acabado de chegar a São Paulo, trabalhava durante o dia e pretendia fazer o vestibular da São Francisco.

O homem o ouviu sem interrupçõ­es, suspirou, abriu um meio sorriso e disse:

- Vou ser franco com você, garoto. Não perca o seu tempo nem o seu dinheiro. Acho que você não tem a mínima chance de passar na São Francisco.

Paulo engoliu em seco; jamais esperaria uma resposta brutal como aquela. Mesmo assim, teve ânimo para reagir:

- Mesmo assim, o sr. pode me vender os livros para eu estudar sozinho?

- O dinheiro é seu. Mas eu já avisei: você não tem chance.

Enquanto caminhávam­os à beira do lago, eu pensei na angústia do meu pai, levando a pilha de livros do centro até o Brás, sob o manto da noite na cidade de São Paulo. Pensei nas noites que ele varou estudando sob a luz fraca da lâmpada no pensionato. Pensei no livro que fora indicado para a prova de inglês do vestibular naquele ano, “Servidão Humana”, de Somerset Maugham (obra que anos mais tarde eu viria a ler e amar). Pensei no teste oral de latim, que lhe foi aplicado por Miguel Reale em pessoa.

Um ano depois daquela noite, meu pai foi aprovado no vestibular da São Francisco. Lá ele aprendeu uma canção, que eu cantei na sua despedida: “Quando se sente bater

No peito a heroica pancada

Quando se sente bater

No peito a heroica pancada

Deixa-se a folha dobrada

Enquanto se vai morrer...

Deixa-se a folha dobrada

Enquanto se vai morrer...”

A folha dobrada é um livro que se fecha. Mas a história de meu pai nunca se fechará para mim. Saudade.

Uma história que Paulo me contou após deixar a sua última sessão de quimiotera­pia

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Arquivo Pessoal

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