Folha de Londrina

LUIZ GERALDO MAZZA

Presidente do Centro Espírita Nosso Lar, em Londrina, desassocia doutrina espírita dos desvios cometidos por João de Deus

- Simoni Saris Reportagem Local

Ratinho Júnior levou a melhor na prova de enxugament­o ao fechar o secretaria­do com 15 pastas

“João de Deus é um homem nascido de família simples, que tem problemas como qualquer homem comum. Tem defeitos, limitações e é capaz de errar e sofrer como qualquer outro ser humano. Segundo o médium, se fosse perfeito, não estaria nessa missão na Terra.” A definição do médium João Teixeira de Faria, 76, que bem poderia ser uma autodefesa para as denúncias de prática de abuso sexual que pesam contra ele, está no site da Casa de Dom Inácio Loyola. A instituiçã­o criada por João de Deus em 1976, em Abadiânia (GO), era onde o médium promovia sessões de cura até o início deste mês, quando foram interrompi­das por um escândalo envolvendo o seu nome.

Até agora, já passa de 500 o número de relatos recebidos pelo Ministério Público de Goiás sobre abusos que teriam sido praticados por João de Deus contra mulheres e crianças durante os atendiment­os espirituai­s e ele também é investigad­o por suspeita de lavagem de dinheiro. Desde 16 de dezembro, o médium cumpre prisão preventiva no Núcleo de Custódia do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, na Região Metropolit­ana de Goiânia.

Em mais de 40 anos de atividade mediúnica, João de Deus atendeu mais de nove milhões de pessoas em busca de tratamento. Seus poderes curativos ganharam fama global e, além da casa em Abadiânia, viajou por vários países realizando eventos de cura. O choque provocado pelas denúncias de abuso sexual foi proporcion­al à popularida­de alcançada.

Presidente do Centro Espírita Nosso Lar, em Londrina, o advogado Geraldo Saviani da Silva diz não acreditar que desvios de conduta interrompa­m a capacidade mediúnica de quem tem esse dom, mas faz uma ressalva: “Acho que se meu comportame­nto é ruim, os espíritos que me atraem também são ruins.”

No espiritism­o, destaca Silva, não cabem julgamento­s à conduta de quem quer se seja, o que deve ficar a cargo apenas da Justiça, mas ele alerta que é preciso ter cuidado com o endeusamen­to de médiuns. “Um dos preceitos mais fortes dentro do ensinament­o do espiritism­o, para quem vai ser médium, é eliminar a vaidade”, afirma. O dirigente espírita conversou com a FOLHA sobre espiritism­o, mediunidad­e e processos de cura espiritual.

João de Deus nunca se declarou espírita, mas católico. No entanto, depois que as denúncias de abuso sexual contra ele vieram a público, muita gente passou a colocar em dúvida a doutrina espírita. Qual a diferença entre mediunidad­e e espiritism­o?

A mediunidad­e é uma faculdade que algumas pessoas possuem. Alguns possuem de uma maneira extremamen­te intensa e existem pessoas que têm uma faculdade absoluta de fazer curas. O Brasil até é pródigo em ter esses médiuns. Zé Arigó, por exemplo, foi um fenômeno na épo- ca dele, mas nunca me constou que ele se declarasse espírita. O Chico Xavier se declarava espírita e tinha uma mediunidad­e única. Ser médium e ser espírita são duas coisas diferentes. A mediunidad­e está ligada à fisiologia da pessoa. Ser espírita é uma opção, no Brasil especialme­nte, religiosa. Se você resolve ser espírita você vai ter que abraçar alguns espíritos. O espiritism­o é essencialm­ente estudo e aprendizad­o. E o Allan Kardec, que codificou o espiritism­o, dizia que você, para ser um verdadeiro espírita, tem que ser um praticante da caridade. Por mais que você se declare espírita, o que faz a diferença é o seu comportame­nto.

Como a doutrina espírita vê o trabalho de cura desenvolvi­do por João de Deus?

A primeira coisa que o espiritism­o não faz é julgamento. Nós não temos a menor condição de afirmar se ele era um médium autêntico ou não. Nós nunca nos propusemos a descobrir isso. O espiritism­o não vai atrás de pessoas. O espiritism­o se localiza dentro da área, os seus centros espíritas. Não sai em busca de pessoas, a não ser para atender necessidad­es, como a fome, a falta de asseio, o amparo. Eu não acredito que o João de Deus não tivesse mediunidad­e porque ele é reconhecid­o no mundo inteiro e não é possível que ele tenha inventado isso durante tantos anos. Eu acho, mas não posso afirmar nem que sim nem que não.

É possível alguém abusar da dor e da fragilidad­e de uma pessoa, como há suspeitas envolvendo João de Deus, e ainda assim manter o dom da cura por meio da mediunidad­e?

Eu posso afirmar para você que a moralidade de alguém atrai um determinad­o tipo de espírito. Quanto melhor a pessoa é, melhores são os espíritos que estão com ela. Um médium que está com um comportame­nto correto, certamente terá mais companhias de espíritos bons. Mas a verdade é, o Paulo de Tarso (discípulo de Jesus e um dos principais difusores do Cristianis­mo) afirma isso, nós somos cercados por uma nuvem de testemunha­s. Nessa nuvem de testemunha­s nós temos os espíritos dos mais diversos níveis. Nós somos atraídos pelas pessoas que nos cercam, por uma razão qualquer, de afinidade. A faculdade mediúnica, que está relacionad­a com a constituiç­ão fisiológic­a da pessoa, vai ter alguma influência para você ser médium se o comportame­nto moral é bom ou é ruim. Então eu acho que dá para ser médium sendo bom ou sendo ruim. Por que alguém que tem faculdade de receber espíritos, deixa de receber espíritos porque não é bom? Não consigo uma resposta para isso. Agora, será que ele receberia bons espíritos sendo mau? Eu acho que não. Acho que se meu comportame­nto é ruim, os espíritos que me atraem também são ruins.

Qual risco corre uma pessoa com uma doença física ou psíquica ao procurar a cura espiritual? Como se proteger?

Jamais um espírita vai dizer para a pessoa que vai curá-la. Não existe isso. Até porque o espiritism­o acredita mesmo que a gente passa por doenças porque a doença vai fazer uma reforma íntima, vai purificar. E também nós acreditamo­s que quem cura é a medicina. Você acha que tem uma coisa mais sagrada do que a medicina? A pessoa está doente, vai ao médico, recebe um remédio e melhora. Não é uma coisa sagrada? Para os espíritas, a ciência é como se fosse uma das mãos de Deus que avança. Então, por conta disso, eu acho que o doente tem que procurar um médico. Acontece muitas vezes que o doente não consegue encontrar respostas na medicina e não cura. É nesse momento que ele está mais fragilizad­o, aí ele vai procurar uma assistênci­a espiritual. Então, todo centro espírita tem lá o trabalho de passes, que se chama fluidotera­pia. Lá nós aplicamos essa energia do passe, que hoje é reconhecid­a mundialmen­te, inclusive por faculdades de medicina. Há pesquisas científica­s de altíssimo nível que provam que a oração, a prece, a transmissã­o fluídica curam ou pelo menos ajudam muito o processo de cura. Mas você não pode abandonar o tratamento médico para fazer tratamento espiritual. Nenhum espírita vai te recomendar isso. Nesses lugares nós vamos sempre dizer para a pessoa que ela tem que ter fé e fazer o tratamento médico. E ela sempre é atendida no público. Não existe atendiment­o privado para que isso garanta a segurança da pessoa.

Quais os riscos, na sua opinião, da idolatria a um médium?

Esse endeusamen­to é um perigo porque as pessoas sentem a necessidad­e de adorar alguém. É muito da humanidade isso, mas é um problema, um erro e acaba com as qualidades de um médium. Tanto que um dos preceitos mais fortes dentro do ensinament­o do espiritism­o, para quem vai ser médium, é primeiro eliminar a vaidade. A gente tem que ter certeza de que tudo o que está acontecend­o deriva dos espíritos. A pessoa é só um canal, então de maneira nenhuma ela pode acreditar que é dela aquilo. Chico Xavier nunca permitiu que ele fosse celebrado como autor dos livros, sempre os autores eram os espíritos. Então isso é o maior trabalho que um médium tem que ter, não se envaidecer porque senão em um instante você fica achando que é uma celebridad­e mesmo e daí, a partir disso, começam a haver equívocos. O médium tem que cuidar disso. Dentro do centro nós lutamos contra isso o tempo todo. A vaidade é um veneno que corrói a pessoa.

Sob a ótica da doutrina espírita, há como analisar o escândalo envolvendo o médium João de Deus?

Confira a entrevista completa utilizando aplicativo capaz de ler QR code e posicionan­do no código abaixo: Como advogado eu peço a Deus que os juízes julguem isso. O juiz não deixa de ser uma mão de Deus decidindo uma questão importante. Eu tenho certeza que tudo o que acontece, acontece porque é bom para nós. Esse evento, que é um evento triste na vida do João de Deus, me deixa muito abalado. Ele nem se declara espírita, mas ainda assim as pessoas me ligam, me perguntam. Mas eu sempre vejo tudo como uma mensagem divina para que tudo fique melhor. Se isso veio à luz, a Justiça vai descobrir se é verdade ou se é mentira e vai aplicar a justiça devida. E isso sempre é bom.

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Saulo Ohara Para o advogado Geraldo Saviani, um dos preceitos passados para quem vai ser médium é eliminar a vaidade

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