Folha de Londrina

Então é Natal

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A já clássica canção natalina de John Lennon, “So this is Christmas”, também com versão em língua portuguesa, tem servido no Brasil, há décadas, como pano de fundo para um dos mais intermiten­tes “ritos da indústria cultural”: o consumo em lojas, supermerca­dos, shopping centers, lojas de departamen­to, mercados públicos, dentre outros, nesta época do ano.

Se pararmos para ouvi-la e, talvez, interpretá-la, a música do Beatle quer trazer à tona a ideia de que, ao estarmos em um período natalino e no final de ano, deveríamos resgatar nossas ações e refletir sobre as mesmas. Adentrando-nos, os primeiros versos nos dizem: “Então é Natal, e o que você fez? O ano termina, e nasce outra vez Então é Natal, a festa Cristã Do velho e do novo, do amor como um todo”. Pergunto: somos capazes de pensar criticamen­te e refletir quando estamos em locais de consumo? Paradoxalm­ente, a música de John Lennon e o ato de consumir parecem, subliminar­mente, compartilh­ar de um propósito comum: Vamos todos às compras! Sem distinção étnica ou racial, nem de poder aquisitivo.

“E então é Natal, pro enfermo e pro são, pro rico e pro pobre, num só coração. Então bom Natal, pro branco e pro negro, amarelo e vermelho, pra paz afinal”. Discursiva­mente, todas essas palavras, expressões e proposiçõe­s estão inseridas em um contexto social, histórico, político e econômico e, de forma inconscien­te, são introjetad­as nas mentes dos cidadãos com o intuito do consumo em massa.

Em um trocadilho com o pensamento de Descartes “Penso, logo existo”, por “Consumo, logo sou”, pensar e refletir, nesta época do ano, pode ser uma condição para poucos de nós. A cultura do consumo de massa, “se registra em grande parte no lazer moderno” por conta das (re)configuraç­ões dos valores culturais atrelados aos poderes de compra e de consumo pelas pessoas.

Segundo o sociólogo Bauman, somos hoje conhecidos como a “civilizaçã­o do bem-estar”, a qual busca uma participaç­ão embrionári­a na aquisição de produtos, o que gera uma racionalid­ade consumista que acompanha o indivíduo do nascimento até à morte.

Sob essa lente sociológic­a, Bauman ponderou, ainda, que as necessidad­es reais do homem moderno tornaram-se ininterrup­tas, incoerente­s e surpreende­ntes: “no mundo dos consumidor­es as possibilid­ades são infinitas”. As receitas para o “bem-viver” e os instrument­os necessário­s para tal possuem uma data de validade e acabam por tornarem-se obsoletas na medida em que novas ofertas de produtos são apresentad­as aos seus consumidor­es.

De acordo com outro sociólogo de nosso tempo, Debord, vivemos na sociedade do espetáculo do consumo, na qual, a condição alienante do sujeito, ao consumir, é reflexo de uma “privação enriquecid­a das falsas necessidad­es”. Em nosso cotidiano, vive-se a eterna e incessante busca por corpos glamouroso­s, roupas de marca e uma vida sofisticad­a, com todos os aparatos digitais de última geração. Essa indústria do consumo, portanto, nos despersona­liza e nos torna objetos, quase que inconscien­tes de nossas ações e, sobretudo, nos torna incapazes de pensar e refletir sobre elas.

A canção natalina de John Lennon finaliza com os versos: “Então bom Natal, e um Ano Novo também. Que seja feliz quem souber o que é o bem”. Vamos celebrar, sim, mais um Natal e Ano Novo, consciente­s sobre o quê, para quê e para quem estamos adquirindo produtos (presentes), refletindo sobre os seus valores simbólico e ideológico subliminar­es, fazendo-nos valer do raciocínio humanístic­o: “Pensamos, logo existimos”.

RAQUEL SILVANO ALMEIDA, professora doutora da Universida­de Estadual do Paraná, campus de Apucarana

Somos capazes de pensar criticamen­te e refletir quando estamos em locais de consumo?

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