Folha de Londrina

80 anos de literatura sem modismos

Contos de Lygia Fagundes Telles mostram que fama de grande dama é injusta

- Marcelino freire Folhapress

Areunião dos contos de Lygia Fagundes Telles encontra uma mulherada empoderada.

O lançamento chega no tempo em que livrarias estão fechando. E o movimento literário pulsante vem das quebradas. Muita autora tem vendido seus próprios livros. Saído com eles debaixo do braço. De sarau em sarau, de slam em slam, de perfil em perfil.

A estreante Aline Bei, por exemplo, é um sucesso. Seu romance “O Peso do Pássaro Morto” tem voado alto. Ganhou prêmio e a autora vive batalhando por sua obra face a face. Já vendeu mais de três mil exemplares nesse esquema. Não encalha.

Jarid Arraes é outra responsáve­l pela falência das megastores. A escritora cearense tem o próprio selo, chamado Ferina, e criou o Clube da Escrita para Mulheres. Não faltam seguidoras. Qual o segredo? Dizem que tem a ver com o lugar de fala. Sei não. Mais fácil, neste caso, talvez seja discorrer sobre a estrutura da bolha de sabão.

A verdade é que este ano foi o ano das mulheres. No Jabuti, no Prêmio São Paulo, no Oceanos, é só reparar na lista: Carol Bensimon, Maria Fernanda Elias Maglio, Ana Paula Maia, Cristina Judar, Marília Garcia etc. É muita gente se movimentan­do.

A Companhia das Letras, editora dessa edição especial com as histórias de Lygia, inclusive está pensando em seguir o “case” da periferia e ir, com os livros, aonde o povo está. Quer montar uns pontos de venda. A saída é não dormir no ponto.

Abri assim esses longos parênteses só para destacar o fenômeno: esse, o de Lygia voltar renovada à trilha que ela mesma inaugurou. Ela e Clarice Lispector e Hilda Hilst. No posfácio, assinado por Walnice Nogueira Galvão, a ensaísta e crítica literária bem assinalou: são 80 anos de produção contínua.

Não é para todo mundo. E a atualidade desta produção então? Quando sai uma coletânea de uma grande escritora, é natural visitar o conjunto da obra a partir de uma leitura dos novos tempos.

Juro que pensei sobre os negros, negras, gays, lésbicas e simpatizan­tes. Tive a curiosidad­e de conferir de que forma cada qual aparecia nas narrativas. Felizmente desisti. De que valeria? Walnice afirma idem, com precisão, o quanto Lygia escapou de modismos e foi sempre fiel a si mesma. E divergente.

Aliás, um dos grandes contos brasileiro­s, de temática LGBT+, é dela: “Uma Branca Sombra Pálida”. É ler e querer sair de casa, transforma­do(a). Lygia corrói qualquer tradição, família e propriedad­e. Essa fama de “grande dama” é injusta. E preconceit­uosa. Sua linguagem se desdobra em muitas. E segue fundo.

Qualquer conto que se leia, de cara, nas primeiras linhas já sabemos que a narradora é invejosa. Ressentida, vingativa. Ou muito mais do que culpada, vítima. É só reouvir a fala doída do conto “A Confissão de Leontina” e pensar sobre os abusos vigentes. Aproveitan­do para peitar, de frente, quem tem a cara de pau de achar que violência contra a mulher é só mimimi. Já perdi minha santa paciência!

Dá vontade de tascar o volume de quase 800 páginas na cabeça de tudo que é machista. Perdão pela ofensiva. Mas Lygia é porrada. Repito: mesmo que a vejam herdeira de uma elegância clássica, é só aparência. Se Clarice era selvagem, se Hilda pornográfi­ca, Lygia é a soma das duas amigas. E das dezenas de mulheres que vemos pular de cada página. Literatura viva e corrosiva, que valerá sempre a pena. Corra para garantir seu exemplar. Pertinho de você, quem diria, já nos melhores pontos de venda.

*Marcelino Freire é escritor e autor do recém-lançado “Bagageiro” ( José Olympio).

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