Natal ou... o amor está no ar
O ‘espírito da coisa’ nem sempre está presente nos filmes com tema natalino, mas alguns podem condensar essa ideia
Natal é época do ano que, de uma ou de outra maneira, afeta a todos. Há aqueles que, apenas dezembro aponta no calendário, se dedicam a decorar suas casas freneticamente; outros se irritam e se amarguram só de pensar nos presentes que terão que comprar; e outros nem sequer celebram a data, por motivos religiosos ou ideológicos. Mas seja lá você quem for diante das sempre obrigatórias comemorações natalinas - e por extensão as de virada de ano, com férias via de regra embutidas - é quase impossível que não tenha guardado em seu imaginário afetivo determinado filme com aquele, digamos, espírito da coisa. E só mesmo no imaginário, porque a produção mais recente...
Não se trata aqui, genericamente, de recomendar este ou aquele título, nem de criar qualificações, de melhores ou piores. A proposta é fazer algumas adequações aos diferentes significados que estas datas podem chegar a ter neste mundo tão diversificadamente natalino. A cada frase citada a seguir corresponde um filme que resume melhor a ideia, esta tal ideia do espirito da coisa.
- O Natal é a melhor companhia quando se está só.Já adivinharam, claro. A numerosa, animada e caótica família McCallister, ao sair para os feriados de fim de ano, esqueceu nada menos que o pequeno Kevin. O pobre garoto, ao invés de fazer disso um pesadelo, transforma em pesadelo uma dupla de ladrões trapalhões. A comédia bem natalina “Esqueceram de Mim”, muito simpática, fez com que aquele Natal de 1990 fosse muito engraçado e tivesse cinemas lotados. E com direito à retomada da história. Depois vieram o 3, o 4 e o 5, mas...
- O Natal é só um absurdo festival de consumismo. “Um Herói de Brinquedo” (1996) talvez seja o filme que melhor defina o que ocorre quando tudo neste período gira em torno de presentes e muito materialismo. O resultado pode ser caos e destruição. Quem já fez fila em loja de departamento para compras de última hora só para sair bem na foto familiar sabe do que estou falando. E quem pensa que o filme exagera o pior que há em nós é porque nunca esteve numa liquidação de loja de brinquedo atrás do jogo da moda: pergunte ao personagem de Arnold Schwarzenegger, que fez misé- rias para adquirir aquele boneco Turboman...
- O Natal pode ser bem legal, mas não gosto de armar a árvore. Há quem pense que amar o período natalino e odiar tudo o que ele representa é uma contradição vital. Mas não. Há quem goste, por exemplo, de estar com a família, ou receber presentes; mas há quem odeie as canções natalinas, o peru ou o chester, insípidos na mesa, ou que à noite tudo em volta fique verde-vermelho-dourado. Para esses adultos, e para aqueles que ainda não superaram sua fase de adolescentes dark, Tim Burton receitou a bela animação “O Estranho Mundo de Jack” (1993), mostrando que não há realmente nenhuma maneira errada de celebrar a data.
- Depois do Natal, hora de mudar a mim e o mundo. Muitas pessoas adoram usar fim de ano para praticar mudança de atitudes. Fim de dezembro fica mais fácil atribuir peso às coisas bem feitas e às mal feitas, em busca do aperfeiçoamento pessoal. Bill Murray e sua genial interpretação em “Os Fantasmas Contra-Atacam” (1988), comédia negra baseada na clássica novela “A Christmas Carol”, de Charles Dickens, mostram que milagres natalinos são até possíveis, seja para começar uma dieta esquisita ou para deixar de ser uma péssima pessoa.
- Natal é uma data de sacrifícios. Nada mais desanimador do que trabalhar no Natal. Mas nada supera o inferno em que mergulha o policial John McClane de Bruce Willis em “Duro de Matar” (1988), um filme natalino sim senhor. A pesada tensão do longa acontece precisamente por ocorrer no Natal. O atentado terrorista parece muito pior e o esforço do herói é muito maior, exatamente porque o publico sabe que ele gostaria de estar com a família em vez de correr descalço sobre vidro moído e na mira de vilões da pior espécie.
- Um presente ruim pode arruinar o Natal. Assim como tem gente que acha que os presentes são o que menos importa, pode ser exatamente o contrário. Há prazer em abrir um pacote e encontrar aquilo que você gostaria, especialmente quando você nunca pediu. Estou aqui me recordando de “Os Gremlins” (1984), que também funciona como alegoria diante do consumismo. O clima era para ser de paz e amor, mas vira puro terror diante daqueles seres fofos que um inocente pingo de água transforma em pesadelo real e demolidor.
- Odeio o Natal, e nada pode mudar isso. Aqui há uma dupla aposta: “O Grinch”, versão Jim Carey (2000), e “Papai Noel às Avessas” (2003), com Billy Bob Thornton. Os dois personagens destilam todo o ódio e o ressentimento que alguém pode sentir pelo final do ano em festa. O segundo título, na verdade, não é um filme típico natalino porque foi feito para uma pessoa totalmente atípica, que odeia totalmente o Natal. Mas há aquela lição do epílogo para compreender que, por mais que haja algo que nos faça sentir miseráveis, sempre será possível uma dose de espirito natalino para amenizar dores e frustrações.
Bem, agora a permissão para o confessionário. Tenho um filme para revelar. E assumir. Como o “meu” filme para esta época. Não uma obra-prima, apenas uma digna comédia romântica. Sem dúvida, acho que o mundo poderia estar um tanto melhor se outros surgissem nos moldes. Vendo e revendo, como faço com frequência, dá até vontade de ser bom de verdade e brindar com champanhe com alguém próximo e querido.
Para quem ama o amor, e gosta dele bem contado na tela, o neozelandês Richard Curtis é velho conhecido. De seu talento nasceram os roteiros dos muito amáveis “Quatro Casamentos e um Funeral”, “Notting Hill” e “O Diário de Bridget Jones”, realizados entre 1994 e 2001. Então, em 2003, ele partiu para a direção. E o “meu” filme apareceu:” Simplesmente Amor” (“Love Actually”). A explicação dele para a estreia atrás das câmeras : “Tinha muitas histórias de amor na cabeça, e não tinha tempo para esperar que diretores filmassem uma a uma”. Assim, ele decidiu fundir todos esses roteiros em um só e colocar-se pela primeira vez como regista. O resultado foi uma colagem de dez pequenas histórias amorosas protagonizadas por uma variada galeria de personagens cujas vidas se entrelaçam de algum modo. Cá entre nós: é uma “A Vida em Si” que deu certo. Quem sabe, sabe...
O experiente roteirista não comete o erro de se repetir. Assim, somos testemunhas de amores entre chefes de estado e secretárias; entre maridos e esposas, irmãos e irmãs, pais e filhos; de amizades duradou- ras, de infidelidades remediáveis. E, como não, de romances entre homens e mulheres com situações vitais tão normais quanto distintas e originais. As diferentes tramas são simultâneas no tempo e estão ambientadas nos dias próximos ao Natal. Ao diretor interessa esse “truque” para extrair sentimentos profundos de seus personagens, de tal modo que, cada um a sua maneira, experimenta a necessidade de abrir seu coração.
Nesse início de século em que o cinema tem cultivado a galopante frustração nas relações, é preciso agradecer a Richard Curtis por seu humor essencialmente otimista, uma declaração de princípios que usa para iniciar o filme. E para dar um final à altura de seu coquetel romântico, Curtis trabalha um elenco uniforme em seu nível invejável, com alguns dos melhores atores britânicos da atualidade. E que demonstram isso em cenas delirantes (Hugh Grant), emocionantes (Colin Firth), surreais (Bill Nighy), mágicas (Keira Knightley) ou comoventes (Emma Thompson, Liam Neeson).
Como de hábito, o roteiro de Curtis é muito bom mesmo. É um exercício ambicioso, que conta esta série de love stories muito diferentes. Como também é ambiciosa a ideia de usar como ponto de partida as chamadas telefônicas do 11 de setembro, observando que todas tinham a ver com o amor: a ideia de que, se surge a oportunidade de falar com alguém quando você vai morrer, não importa que tipo de pessoa você é, nem a vida que tem levado, nem o mau sujeito que você tenha sido. O certo é que o que você vai querer comunicar é uma mensagem de amor. É uma ideia muito provocadora.