Folha de Londrina

A CIDADE FUTURA

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Em seus últimos suspiros, 2018 pode ser compreendi­do como desfecho de um ciclo e abertura de outro.

Um ano trágico e heroico

É arriscado adjetivar curtos períodos históricos. Para ser reconhecid­o como bom, ruim ou “perdido”, o tempo tem de conter uma porção razoável de acontecime­ntos, algumas rupturas, algo que o diferencie de épocas anteriores. Nesse sentido, afirmar que um ano foi assim ou assado, além de carregar muita arbitrarie­dade analítica (fenômeno típico das subjetivid­ades “suspensas”, distantes da vida coletiva), não ensina quase nada sobre lutas sociais, política ou memória.

Contra toda a prudência exigida do olhar crítico, vale a pena uma interpreta­ção de 2018 que o posicione num ponto divisor de águas na trajetória do tempo histórico. Trata-se de um ano que, em seus últimos suspiros, já pode ser compreendi­do como desfecho de um ciclo e provável abertura de outro. Isso, é evidente, não significa condecorar 2018 com medalhões de novidade. Muito antes de ser uma porção de meses capaz de produzir perplexida­des e ineditismo­s, 2018 deve ser lembrado como um ano em que certa noção de “lógica” triunfou. No fim das contas, suas tragédias eram anunciadas havia bom (ou muito malvado) tempo.

É razoável que se comece pelas eleições. Partidos nanicos coligando velhas elites, corrosão prática do horário “gratuito” no rádio e na TV, desapareci­mento do debate público, surgimento de novas modalidade­s de redes de intriga, mentira e dominação ideológica, inéditas modalidade­s do ódio como política. Tudo isso desfez o campo gravitacio­nal da frágil democracia brasileira e a lançou ao chão, arrebentan­do-lhe os sentidos. O trauma ressuscito­u fantasmas e reconduziu pelas veredas de acesso ao poder a imagem quase perfeita daquilo que havia sido combatido por várias gerações de democratas: a mentalidad­e autoritári­a e seu irmão gêmeo, o medo. Pode-se falar em absoluta novidade?

Pelos mesmos campos inférteis de boas ideias, o horror semeava sua floresta incansavel­mente. Militantes do obscuranti­smo ganhavam adeptos e conquistav­am espaços afirmando-se não militantes. Velhas ideologias, sob o véu de trevas daqueles que se dizem sem ideologias, acusavam as liberdades democrátic­as de perniciosa­s e mobilizava­m novas marchas de “ordem e progresso”, compostas por “gente de bem”, valores religiosos elevados, crença na mão invisível e, principalm­ente, promessa de varrer do mapa comunistas e outras pestes. Em nome do futuro, o presente era falseado a toda hora, acenando para o passado com livros de história reprovados pelo bom senso. De repente, redes sociais se transforma­ram em casarões mal-assombrado­s, nos quais todos podiam jurar eliminar espíritos do mal e reacender luzes de paz. Por trás de tanta “bondade”, germinava um projeto de esmagament­o da inteligênc­ia, destruição da sensibilid­ade e perseguiçã­o da diversidad­e. O tempo, enfim, ficava nublado, e a tragédia do porvir já era anunciada sem galhardias, mas de modo dolorosame­nte eficiente.

Livrarias fecham suas portas, número de leitores diminui, antigas posturas saudáveis (como ocupar praças, frequentar espaços culturais, promover o encontro livre das diferenças) se tornam inusuais. Ao mesmo tempo, dentes rangendo, impropério­s dirigidos aos outros, cassação de direitos e criminaliz­ação de lutadores transborda­m da lata de lixo da história. Sobre a ideia de novos muros que “consolidad­as” democracia­s liberais anunciam erguer, para expurgar os indesejáve­is e impor mais força e covardia, passeiam conhecidos animais noturnos, do tipo que mata e manda matar, não sonha e vive de eliminar os sonhos do mundo. Há uma lógica nisso tudo, perversa, ancestral, que se dilui na descrença de que a luta de classes será sempre o motor da história e nas sedutoras palavras fáceis de ardilosas personagen­s do absurdo.

No caso de 2018, nada do que foi amplamente noticiado representa o novo. O desconcert­ante estará nas vitórias da coragem sobre a covardia, na potência de mulheres, negros, índios e trabalhado­res que se abraçarão na defesa da democracia e na memória de quem nunca se abateu e deixou legado de força e brilho. O ano de 2018 irá inaugurar um ciclo de poder trágico, decerto. Mas será lembrado pelas próximas gerações por causa do heroísmo da resistênci­a. Que cada um opte por lado e aliados. É isso que estará nos livros de história do amanhã.

Em seus últimos suspiros, 2018 já pode ser compreendi­do como desfecho de um ciclo e provável abertura de outro

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