Folha de Londrina

Viagem às sombras do passado

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Trinta anos depois, ele estava de volta ao mesmo lugar. Durante todo esse tempo, sabia que o velho clube de campo continuava lá, nas cercanias da cidade, e que o mesmo córrego ainda estaria murmurando seu dialeto de água no fundo do vale sem nome. Mas ele havia se esquecido de um detalhe: o bambuzal. Quando o vento bate nos bambus, reproduz com perfeição o som de uma porta se abrindo depois de muitos anos, ou de uma carroça que peregrinav­a nos tempos em que todas as estradas eram de terra, ou do forro da sua república demolida. E era esse som que ele ouvia agora no mesmo lugar em que conversara com ela, trinta anos atrás.

De início, ele hesitou, mas resolveu seguir. Com algum constrangi­mento se esgueirou pela trilha que conduz do lado moderno ao lado abandonado da propriedad­e, cuidando para que os poucos frequentad­ores do local não o vissem.

Desceu. Para seu grande espanto, encontrou a velha sede social agora em ruínas. Ali ficava a cantina; ali as churrasque­iras; ali as mesas. Agora tudo estava tomado pela sujeira e a destruição, como se tivesse ocorrido um bombardeio aéreo. Não havia mais teto; o mato crescia nas rachaduras do piso; ratos e escorpiões certamente moravam no meio das tábuas podres. Na parede descascada, a propaganda de uma cerveja que não existe mais. “Apenas trinta anos já são suficiente­s para que se forme um sítio arqueológi­co”, pensou.

Um pouco mais embaixo, meio destruído, está o banco em que ele conversou com a garota, a alguns passos do córrego, numa tarde igual a esta. Ele não seria a mesma pessoa depois daquela conversa; nela entrou um menino, dela saiu um homem. Embora ele nem sequer a tivesse tocado - nem mesmo um beijo -, uma constelaçã­o de objetos luminosos que ele jamais vira até então começou a acender-se em meu espírito, como lâmpadas votivas. Mas ele não acreditava em espírito; achava-me materialis­ta e profundo. “Um rematado idiota”, pensou, com a certeza de trinta anos a mais.

Aquela conversa platônica que eles, dois adolescent­es, tiveram no fundo de vale era apenas o anúncio de um longo período de trevas, em que ele não passaria um só dia sem cometer uma grave ofensa a Deus. Um dia, a garota sairia de sua vida para nunca mais, como se um dedo invisível houvesse apagado o interrupto­r, e ele demoraria um longo tempo para descobrir que a luz não vinha dela.

O barulho do vento no bambuzal o chamava outra vez para o espaço que um dia ele tanto amara, um dos cenários da sua vida, a solidão absoluta. Mas ele não iria mais; já conhecia o lugar, recusava-se a ser ludibriado mais uma vez pelo pior inimigo.

Trinta anos antes, totalmente bêbado, ele fora carregado de volta para a República. Seus amigos o deitaram na cama e ele olhava para a lâmpada do teto, que girava sem parar, como uma estrela, como uma galáxia, como um elétron.

Graças do Deus, ele já não era o mesmo. Com calma e uma estranha alegria, despediu-se das ruínas, do córrego e do rangido da porta. Subiu a tempo de ver o Sol se pôr.

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Paulo Briguet

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