Elis muito além da performance
A estreia da minissérie “Elis - Viver é Melhor que Sonhar”, esta semana, trouxe de volta à TV um capítulo importante da música brasileira. Primeiro mostrando os passos iniciais da bossa nova no famoso Beco das Garrafas, no Rio, onde Elis despontou como a gauchinha que trilhava a carreira artística acompanhada sempre pelo pai.
Os anos da bossa, com seu estilo intimista de “música para ser tocada nos apartamentos”, com vozes suaves e mais baixas para não incomodar a vizinhança, trazia um contraponto aos estilos dramáticos dos cantores dos anos 1940 e 50.
Enfim, a música podia ser um “barquinho a deslizar no macio azul do mar”, como na composição de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, na contramão da dramaticidade das vozes e estilos exuberantes de Carmen Miranda, Dalva de Oliveira ou Izaurinha Garcia.
A minissérie produzida pela Rede Globo faz a ponte entre a Bossa Nova e a MPB Música Popular Brasileira - que teria Elis como uma das principais intérpretes. Ela mesma sofreu o preconceito dos músicos que se reuniam no Beco das Garrafas que inicialmente, com algumas exceções, a tratavam como uma caipirinha do sul do Brasil que chegava à meca das artes. O papel do coreógrafo e bailarino novaiorquino Lennie Dale na carreira de Elis foi fundamental. Responsável pelos shows produzidos no Beco das Garrafas, foi ele quem anteviu o diamante a ser lapidado, reconhecendo imediatamente o talento da cantora que só precisava se soltar um pouco mais, ganhando no palco a mesma presença incorporada na voz. Como quem dá linha a uma pipa para que suba mais alto, Dale deu asas a Elis, fazendo a cantora girar os braços como um helicóptero nas suas apresentações, performance que virou sua marca registrada.
Se o Rio, no início, não era muito afeito a Elis, São Paulo a receberia de braços abertos. Foi lá que ela começou com Jair Rodrigues a apresentar o programa O Fino da Bossa, na TV Record, que duraria de 1965 a 1967. Quem passou a infância ou adolescência nos sofás em frente à TV, neste período, nunca vai esquecer da hora mágica em que a programação se abria aos gritos de “Upa Neguinho”, canção símbolo composta por Edu Lobo.
Mais tarde, Elis se casou com Ronaldo Bôscoli que, a princípio, assim como Tom Jobim no Beco das Garrafas, também não apostava todas as suas fichas na cantora. Mas nasce deste encontro artístico e afetivo a estrela que surpreendeu o crítico Nelson Motta por sua interpretação jazzística. Elis ainda mudaria de amores e adotaria uma postura politizada nos anos seguintes.
Ecoam deste período até hoje sucessos inesquecíveis como Águas de Março, Casa no Campo, Velha Roupa Colorida, Como Nossos Pais, Maria Maria, O Bêbado e o Equilibrista e tantas outras. Passaram pela voz de Elis as canções mais emblemáticas de uma geração talentosa de compositores que a consolidaram como uma das intérpretes mais importantes do século 20.
Olhando para a história de talentos que se multiplicaram num campo estético surpreendente, sob o ponto de vista musical e da poesia implícita nas letras, fica a pergunta sobre os desdobramentos da música brasileira que chega ao século 21 com gêneros diversificados e antenados às tendências mundiais - o que é bom - mas inegavelmente empobrecida sob o ponto de vista dos ritmos maçantes, letras apelativas e sem poesia. Ouvir Anitta, embora com todo talento ressaltado por superproduções e efeitos especiais, cantar: “Vai, malandra, an an/ Ê, ‘tá louca, tu brincando com o bumbum/ An an, tutudum, an an”, é uma enorme decepção que me faz perguntar o que estão fazendo com nossos ouvidos e, sobretudo, com nossa percepção dos caminhos mais inteligentes e delicados da música brasileira que não pode ser apenas performance. Ou bastaria Elis Regina girar os braços como um helicóptero e Anitta abaixar o bumbum e a qualidade das letras até o chão.