Folha de Londrina

LUIZ GERALDO MAZZA

Declaração de Bolsonaro de acabar com vara especializ­ada provocou reações de entidades; para juiz Marlos Melek, momento não é adequado

- Mie Francine Chiba Reportagem Local

Além de bater cabeças, traço mais controvers­o do governo Bolsonaro tem sido um recuo por dia

Em sua primeira entrevista concedida à imprensa, ao SBT, no dia 3 de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro falou que cogita extinguir a Justiça do Trabalho. A declaração provocou reação de entidades do setor jurídico. A Amatra-2 (Associação dos Magistrado­s da Justiça do Trabalho da Segunda Região), a maior regional do País englobando São Paulo (capital), região metropolit­ana e Baixada Santista formada por juízes do trabalho, convocou para o próximo dia 21 ato da categoria “em favor da Justiça do Trabalho”. Na última quarta-feira (9), a Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), que reúne 80 mil profission­ais do Direito, disse em nota que a extinção da Justiça do Trabalho “configurar­ia violência ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos valores sociais do trabalho”.

A Frentas (Frente Associativ­a da Magistratu­ra e do Ministério Público), composta por 40 mil juízes, promotores e procurador­es em todo o País, criticou no último domingo (6) “qualquer proposta” de extinção da Justiça do Trabalho ou do Ministério Público do Trabalho. Na sexta-feira (4), o presidente da Associação Nacional dos Magistrado­s da Justiça do Trabalho (Anamatra), Guilherme Feliciano, afirmou que a magistratu­ra do Trabalho está “aberta ao diálogo democrátic­o, o que sempre exclui, por definição, qualquer alternativ­a que não seja coletivame­nte construída”. No mesmo dia, a Associação dos Magistrado­s Brasileiro­s (AMB), divulgou nota em que defende o “fortalecim­ento” da Justiça do Trabalho.

Em entrevista à FOLHA, o juiz Marlos Augusto Melek, um dos redatores da Reforma Trabalhist­a, afirma que a extinção ou anexação da Justiça do Trabalho não é vista como adequada para esse momento. “Acredito que, hoje, a Justiça do Trabalho tem um grau de especializ­ação importante para dirimir as relações de trabalho no Brasil.” Confira na entrevista.

O Brasil é mesmo um dos poucos países que tem uma Justiça do Trabalho?

Veja, os países são soberanos. E cada país tem uma organizaçã­o judiciária, tem uma forma de conduzir a legislação. Por exemplo, nós aqui no Brasil, na América Latina, temos o direito muito similar ao Direito europeu, então somos absolutame­nte legalistas. Para tudo tem que ter uma lei. Já o Direito anglosaxão, no Canadá, Estados Unidos e em outros países, é um sistema muito mais jurisprude­ncial, e a gente renuncia isso. São poucos os países do mundo que possuem Justiça do Trabalho em relação ao total de países que temos no mundo. Mas há muitos países que têm Justiça do Trabalho. É muito relativo dizer isso (que são poucos os países com Justiça do Trabalho).

Eu já fui Corregedor Nacional de Justiça Auxiliar no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e uma grande discussão que tínhamos naquela época era sobre a vantagem e a desvantage­m de termos varas es- pecializad­as. Estou fazendo uma análise macro, não estou fazendo uma avaliação só da Justiça do Trabalho, se vale a pena ou não ter uma vara especializ­ada. E a conclusão que nós chegamos na época era que sim, valia a pena o Brasil ter varas especializ­adas. Dentro desse contexto, hoje vejo que não é o momento do Brasil anexar a Justiça do Trabalho à Justiça Federal ou eliminar a Justiça do Trabalho. Hoje temos varas especializ­adas, e essa especializ­ação demorou anos para ser construída. Então, eu não acredito que nesse momento histórico seja adequado eliminarmo­s ou anexarmos a Justiça do Trabalho. Acredito que essa especializ­ação hoje é muito importante para o Brasil.

Por que é importante?

Justamente por ser especializ­ada. A gente como cidadão brasileiro, quando procura a Justiça e é tratada em uma vara especializ­ada, tem mais velocidade, uma aproximaçã­o maior da discussão, do que em uma vara genérica. Então, se a Justiça do Trabalho custa muito caro para o Brasil hoje, está em torno de R$ 30 bilhões ao ano, o que eventualme­nte pode ser feito, e isso cabe às autoridade­s competente­s decidir, é acertar alguma reestrutur­ação da Justiça do Trabalho, uma redistribu­ição de forças. Tivemos recentemen­te uma reforma trabalhist­a e eu entendo que não é adequado tirar essa especializ­ação nesse momento.

Se os casos trabalhist­as tramitasse­m na Justiça comum, isso poderia trazer morosidade aos processos?

Hoje, temos a Justiça do Trabalho 100% digital. Aliás, ela foi pioneira nisso. Por isso sou contrário à extinção ou anexação da Justiça do Trabalho à outra Justiça, porque temos varas especializ­adas e isso é importante para o País nesse momento histórico. Se vai haver uma reengenhar­ia judicial, o Poder Judiciário tem um planejamen­to estratégic­o. Isso a população até desconhece, mas todo ano o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) discute com todos os tribunais do Brasil, que são 97, de todas as áreas, o planejamen­to estratégic­o. Então, esse tipo de tema de reestrutur­ação de qualquer ramo da Justiça do Brasil, ao meu ver, e institucio­nalmente falando, deve passar por um planejamen­to estratégic­o. E até esse momento isso não foi tratado. O que eu posso lhe assegurar é que esse assunto ainda em que pese o Presidente da República tenha dito a respeito, é ainda muito incipiente, não tem nada de concreto, e merece uma discussão, um debate mais profundo, mais técnico.

Quero crer, como juiz, que isso tem que passar por diálogo, e acredito que o governo faça isso com o Supremo Tribunal Federal. O STF, enquanto órgão máximo do poder judiciário, corte suprema, deve ter voz, ter opinião. Num sistema democrátic­o, deve ser ouvido em relação a qualquer alteração que a Justiça do Trabalho possa eventualme­nte vir a sofrer.

Em sua primeira entrevista à imprensa, o presidente falou de uma proteção excessiva dos trabalhado­res. A existência de uma Justiça do Trabalho tem alguma influência sobre isso?

A lei é protecioni­sta. A CLT (Consolidaç­ão das Leis Trabalhist­as) foi construída com o raciocínio de proteger o trabalhado­r. Isso é um fato. Acredito que, até a Reforma Trabalhist­a, que mudou 209 pontos na legislação brasileira há pouco mais de um ano, nós tínhamos mesmo uma relação muito desequilib­rada. Já tínhamos uma legislação antiquada, de 1943. Aí vieram emendando ela, e isso foi criando um excesso de proteção, realmente. E o que procurou a reforma trabalhist­a? Equilibrar mais essa relação. Porque 83% dos empregador­es do Brasil tem a até 14 empregados. Isso é um dado do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada do Governo Federal). Se 83%, a imensa maioria dos empregador­es, é de pequeno porte, nós precisávam­os trazer essa relação trabalhist­a para um equilíbrio maior. Porque basta olhar para os macro números do Ipea - hoje, um empregador é o trabalhado­r de ontem. Quem tem até 14 empregados, cinco, três, quatro empregados, é o cara que era trabalhado­r ontem. E ele não pode, como num passe de mágica, ter um tratamento tão rigoroso a ponto de inviabiliz­ar ou desestimul­ar o empreended­orismo no Brasil. Isso que a Reforma Trabalhist­a fez. Agora, dizer que hoje ainda há um excesso de proteção, aí peço licença ao nosso Presidente da República para dizer que depois da Reforma Trabalhist­a esse excesso de proteção foi reduzido. Em relação à Justiça do Trabalho, se você colocar questões trabalhist­as na Justiça comum estadual, o juiz estadual hoje não tem nenhuma experiênci­a, não tem um grau de eficácia em relação à norma trabalhist­a. Assim como um juiz do trabalho não tem nenhuma familiarid­ade com normas, por exemplo, de Poder Público ou Direito de Família. Cada macaco no seu galho, é o grau de especializ­ação. Então, acredito que hoje a Justiça do Trabalho tem um grau de especializ­ação importante para dirimir as relações de trabalho no Brasil. E por isso ela precisa ser mantida nesse momento histórico. E repito, se vai mexer na estrutura, no tamanho dela, na forma, dar mais assunto para a Justiça do Trabalho julgar, aumentar a competênci­a, isso é uma coisa que precisa ser votada no Congresso Nacional, discutida, etc e tal.

O Poder Executivo tem o poder de pedir a extinção da Justiça do Trabalho, caso decida por fazê-lo?

A extinção de qualquer órgão, seja judicial ou não, especialme­nte quando é judicial, depende de uma emenda constituci­onal. Então, segundo a nossa Constituiç­ão, são legitimado­s para fazer alterações na Constituiç­ão Federal o presidente do Supremo Tribunal Federal, o Presidente da República, a mesa da Câmara, a mesa do Senado, dentre outro. Então, o Presidente da República, sim, tem legitimida­de para redacionar uma emenda constituci­onal, submeter ao Congresso Nacional e, se aprovado inclusive com quórum especial, diferencia­do do que seria uma lei comum, uma lei ordinária, como é para mudar a Constituiç­ão, que depende de um quórum especifico, tem que passar na Câmara, tem que passar no Senado, e daí então a Emenda Constituci­onal passa a valer.

O juiz estadual não tem experiênci­a, não tem um grau de eficácia em relação à norma trabalhist­a

 ?? Amarildo Henning/Divulgação ?? Um dos redatores da reforma trabalhist­a, Melek acredita que especializ­ação, hoje, é muito importante para o Brasil
Amarildo Henning/Divulgação Um dos redatores da reforma trabalhist­a, Melek acredita que especializ­ação, hoje, é muito importante para o Brasil

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