LUIZ GERALDO MAZZA
Professor da UFSC comenta avanços nos direitos dos surdos e problemas no ensino especializado
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Odiscurso da primeiradama Michele Bolsonaro, na posse do marido, o presidente da República Jair Bolsonaro, colocou em destaque a língua de sinais e a importância de se avançar nas políticas públicas voltadas aos surdos. André Ribeiro Reichert, professor da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), que se “descobriu” surdo na pré-adolescência, comemora a projeção, mas pondera que histórico de lutas não pode ser esquecido.
Reichert coordena uma equipe nomeada pelo Ministério da Educação que faz o mapeamento das escolas bilíngues de todo o País. O acordo de cooperação técnica prevê a elaboração de estratégias de implementação e fiscalização da educação bilíngue. Ele destaca os avanços obtidos nas últimas décadas, mas expõe um longo caminho a ser percorrido. Confira a entrevista.
Como você se “descobriu” surdo e como lidou com isso?
Me ‘descobri’ surdo quando estava já na pré-adolescência, em uma escola bilíngue para surdos. Foi neste espaço que eu pude olhar para mim mesmo como um sujeito cultural e aprender a minha língua, a língua de sinais. “Lidar” com essa descoberta significou uma mudança determinante para o meu sucesso enquanto aluno, cidadão, e como pessoa. Tratou-se, para mim, de um ambiente em que eu pude ter o exemplo de outros surdos, aprender com eles e me tornar também um modelo, como participante de uma comunidade linguística. A escola de ouvintes, que cheguei a frequentar sendo eu o único surdo em uma sala de aula, não havia me dado essa oportunidade. A escola bilíngue de surdos é que foi a responsável por oportunizar que eu me visse enquanto diferente e aí poder valorizar o que eu sou e o que os outros são.
Acredita que tivemos avanços no combate ao preconceito nas últimas décadas?
Sim, muitos. A legislação que trata da língua de sinais e as políticas implementadas, principalmente nas últimas duas décadas, são provas de que avançamos. As famílias e as escolas também vêm se envolvendo num processo de integração do surdo na sociedade. Porém, a mudança principal ainda está sendo construída, que é a mudança subjetiva em relação ao significado de ser surdo e a valorização daquilo que há de positivo e belo na cultura surda. Em geral, o entendimento é de que o surdo tem uma deficiência que deve ser compensada com a reabilitação auditiva e uso de próteses e implantes cocleares. E isso ocorre mesmo depois de muitos anos de luta política dos surdos em favor da língua de sinais e da possibilidade de um olhar cultural sobre esses sujeitos. O risco é também a glamourização da língua de sinais e consequente visão romantizada da surdez. Devemos avançar em relação a esses discursos. A partir do subjetivo, partir, então para o social, abrangendo as várias comunidades.
Como você avalia o paralelo entre surdez e educação hoje no País?
A educação de surdos apresenta um panorama preocupante. Primeiro, porque a educação básica do Brasil é problemática, apresentando índices nada positivos e é ainda um desafio no sentido de valorizar o professor, os espaços escolares e não-escolares, e, fundamentalmente, produzir nas pessoas o imaginário de que a educação é um processo vital para a nossa civilização. Talvez seja por essa falta de valorização da Educação como um todo é que ainda há pouco cuidado em relação aos processos implicados em projetos educacionais e em políticas públicas que envolvam a escolarização. Digo isso em função das políticas de Educação Inclusiva, que são o trend das últimas décadas. Pouco se analisou as especificidades dos surdos quando da criação e implementação de políticas inclusivas. Então, questões como a aquisição de língua em um ambiente de usuários adultos da língua de sinais foram preteridas em favor de uma política que simplesmente visava a convivência entre surdos e ouvintes. Concordo que os surdos devem conviver, e obviamente convivem, com ouvintes, com pessoas de diversos grupos sociais e culturais. Mas o que deve ser priorizado? O principal é que o surdo adquira sua língua, em um ambiente apropriado, torne-se fluente em língua de sinais, e, então, possa aprender a língua portuguesa. Outro problema é a confusão entre políticas educacionais e de saúde. Quando se fala em protetização, tudo parece fluir nas políticas. Quando o assunto é formação de professores habilitados ao ensino de Libras, as coisas são bem diferentes. Precisamos de formação para atuação em escolas bilíngues, em que a língua de comunicação entre todos os alunos, professores e funcionários seja a Libras. A educação de surdos depende dessa concepção para que os alunos tenham uma língua adquirida já na primeira infância, e, consequentemente, acesso pleno aos direitos educacionais, ao direito à uma educação de qualidade.
A língua de sinais ganhou holofote com o discurso da primeira-dama na posse de Jair Bolsonaro. Isso pode ser um sinal de fortalecimento das políticas públicas nesse sentido?
Penso que o discurso da primeira-dama foi sim, para a língua de sinais, uma projeção. Mas é preciso ter cuidado para não deixarmos à sombra todo o histórico de lutas das pessoas surdas no Brasil. A Feneis (Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos), da qual sou diretor de Políticas Educacionais, há décadas vem trabalhando no sentido de buscar a valorização social da pessoa surda, há também os pesquisadores surdos e ouvintes de várias universidades no País, professores de escolas, intérpretes de língua de sinais, enfim, são muitos atores que dedicaram vidas inteiras à causa. O que esperamos é que haja avanços, valorização da formação de professores, da pesquisa acadêmica, etc. A Libras deve ser entendida como um bem cultural da nação, por isso, esperamos poder comemorar avanços, mas que sejam avanços que contemplem os surdos e outros grupos sociais, dos quais os surdos também participam, como negros, indígenas, pessoas LGBTQ, etc. Penso que quando assumimos uma interpretação cultural da surdez, o mais lógico é que sejamos sensíveis a todas as diferenças, não apenas à diferença surda.
Comente um pouco sobre sua trajetória profissional e seu trabalho de cooperação técnica de levantamento em escolas bilíngues de todo Brasil
Durante a maior parte da minha trajetória eu atuei como professor de Libras e líder na comunidade surda. Ensinei essa língua para pessoas ouvintes em universidades e tive a oportunidade de ensinar crianças e jovens surdos em uma escola bilíngue de Porto Alegre. Atualmente sou professor da UFSC e, paulatina e voluntariamente, diretor nacional de políticas educacionais e linguísticas da Feneis, e foi nessa condição que fui convidado pelo ex-ministro da Educação Rossieli Soares a assumir, por um ano, a cooperação técnica para elaborar as estratégias de implementação e fiscalização da educação bilíngue dos surdos brasileiros. Quanto às escolas bilíngues, o que se tem percebido são problemas decorrentes da falta de políticas linguísticas voltadas para as pessoas surdas. É preciso primeiramente entender a Libras como língua e não como recurso didático. A Libras deve fazer parte de todos os aspectos da vida dos surdos, para isso é preciso que bebês surdos sejam expostos à essa língua, que todos os veículos midiáticos tenham acessibilidade, enfim, para que o surdo se torne bilíngue, ou seja, para que saiba a Libras e consiga ler e escrever textos em português, ele precisa de muito mais do que uma escola que seja bilíngue. A família deve se envolver nesse processo, o surdo precisa ver a sua língua em muitos espaços, ter isso como natural e constante em seu cotidiano. Se percebemos que mesmo muitos dos professores de surdos não sabem a língua de sinais, ou sabem apenas os rudimentos, insuficientes para um trabalho pedagógico efetivo, é por conta dessa falta de entendimento da Libras como um sistema linguístico que abrange todas as dimensões da vida.
Para finalizar, quais são suas expectativas para as próximas décadas. O quanto precisamos evoluir para solidificar a inclusão?
Primeiro, é preciso entender o que é inclusão, há que se redefinir essa ideia levando em conta aquilo que os surdos já vêm alertando há muitos anos. Inclusão significa, entre outras coisas, promover a autonomia das pessoas, a mobilidade nos espaços sociais, acesso aos bens culturais, etc. Inclusão não se trata exclusivamente do convívio em um mesmo espaço. Para os surdos, isso só será alcançado quando se compreender que a escola bilíngue proporciona aquisição de uma primeira língua, a Libras, e isso possibilita o sucesso acadêmico. Para as próximas décadas, espero que os ouvintes percebam a riqueza e o valor da língua de sinais e a vejam como um artefato cultural da humanidade, que deve ser preservado, explorado, divulgado e que os surdos não podem ser reduzidos à sua condição auditiva. Inclusão social não é o mesmo que inclusão educacional. São propostas diferentes que não atendem aos surdos. Por exemplo, a inclusão social é uma das bandeiras que os surdos levantam nas suas lutas, nos seus movimentos, pois vivemos numa comunidade (surda) dentro de uma outra comunidade maior (surdos, ouvintes, índios, negros, mas, majoritariamente, ouvintes), assim, saber uma das línguas reconhecidas no Brasil favorece a inclusão do sujeito que a usa e enriquece culturalmente a sociedade. A inclusão educacional diz respeito a pessoas com deficiências que precisam ser incluídas num espaço, mas que partilham de uma mesma língua e, talvez, cultura. Surdos são uma comunidade linguística e cultural, logo, a inclusão educacional que tanto pregaram os governos anteriores, não os atende. De forma alguma. Pelo contrário, infringe todos seus direitos linguísticos, culturais e educacionais.