Folha de Londrina

Armas e almas

- D.pellegrini@sercomtel.com.br

“Às armas, cidadãos, formai vossos batalhões, marchemos” - conclama o hino da França, berço moderno da democracia. No berço antigo, a Grécia, os meninos já conheciam armas. Muitos hinos são guerreiros, alguns até falando em canhões, sempre convidando o povo ou seus heróis a morrer pela pátria.

Há quem defenda que os hinos guerreiros devem ser refeitos, mas assim não se perderiam como testemunho­s históricos de evolução? E sempre se pode reinterpre­tar: “às armas, cidadãos” (mas as armas podem ser a net e a cidadania), “formai vossos batalhões” (nas redes digitais), “marchemos” (sem crer porém que apenas marchas resolvem qualquer coisa).

Mas em seguida o hino francês deseja que “sangue impuro embeba nossos arados”, imagem brutal de quem ainda via a democracia como triunfo vingativo. Hoje sabemos que a democracia apenas consagra temporaria­mente as maiorias, porém preservand­o as minorias até porque podem formar maioria no futuro. E quem garante a Justiça, que garante a democracia, são as forças policiais e militares, todas armadas. Afinal, qual é a nação do mundo cuja ordem não é garantida em última instância por forças armadas? Até o Vaticano tem sua Guarda Suíça.

Mas eis que nosso presidente faz respeitar o que o povo já decidira por plebiscito, o direito a se armar, e acende-se uma celeuma alimentada por fanatismo cego de um lado e, do outro lado, ressentime­nto eleitoral. E a posse de arma passou a ser assunto dominante nos noticiário­s.

Doutor Google, entretanto, mostra que as estatístic­as são uma fonte segura de incertezas sobre o assunto. Países muito armados, como o Canadá, tem muito poucos homicídios, enquanto países também muito armados como os Estados Unidos tem muitos homicídios, embora quem mais use armas para matar por lá são os suicidas. Numa vista geral, parece que o porte de arma importa muito menos, para matar gente, do que permitir crime organizado, leis lenientes, justiça frouxa e impunidade.

Eu pensava que pudesse passar ao largo dessa polêmica, até meu neto passar a fazer revólveres de papelão e a transforma­r guarda-chuvas em metralhado­ras. Não ganha armas de brinquedo de presente, nem precisa, ele mesmo faz. Com requinte, como um colete policial feito de papelão duro todo cheio de bolsos, um artesanato. Mas ele ainda não sabe se quer ser militar ou, herança cultural da Lava-Jato, policial federal.

Deveria eu dizer não, sufocar vocação? Eu, que fui menino fã de faroestes com revólveres de munição inesgotáve­l? Eu que jovem sonhei com guerrilha para tomar o poder? Mesmo que hoje eu não acredite em qualquer mudança ou melhoria por força das armas, como posso negar a meu neto essa mesma evolução? E ser policial não é um serviço essencial para a ordem democrátic­a?

Mas ele também toca cello, desenha, pinta e borda, conta piadas, e talvez as armas sejam só uma fase, quem sabe vire um artesão ou comediante e riremos de tudo isso. A foto aí acima é do dia em que toquei bumbo na fanfarra do Educandári­o Rui Barbosa, em Cornélio Procópio, todo orgulhoso do meu dólmã, mas nem por isso me tornei militar.

Espero que não decretem que só meninos poderão brincar com armas, nem que meninas brincarão só com bonecas, e também deixem meninos brincar com bonecas e meninas com armas. De resto, desconfio que quaisquer danos causados pelas armas, nas mãos dos cidadãos, dependerão muito mais das consciênci­as que dos calibres. Mas nenhum hino conclama os cidadãos a se conscienti­zar, ou seja, a pensar no que estão fazendo e se isso é bom para todos. Portanto: às almas, cidadãos!

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Arquivo de família

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