Folha de Londrina

A CIDADE FUTURA

- Por Marco A. Rossi

Uma ideia fecunda é sempre ambígua: original e acompanhad­a de obras e autores para sustentá-la

Uma ideia fecunda é sempre ambígua. Deve carregar originalid­ade e, ao mesmo tempo, revelar-se bem acompanhad­a de obras e autores que possam sustentá-la, dar fôlego e credibilid­ade. Nesse sentido, um texto rico é aquele que apresenta algum ineditismo na análise e, paradoxalm­ente, surja à luz amparado por conceitos e categorias que recebem amplo e vasto respeito na história das ideias. A fonte de uma ideia é seu corolário.

Riqueza e rebeldia são qualidades complement­ares a uma ideia potente. O desejo de transfigur­ar injustiças, quebrar rotinas, sublimar exploraçõe­s e dar nó no senso comum (esse libelo do mal-estar pós-moderno) torna uma ideia um sentimento ou valor universal. Nas artes da palavra - da poesia romântica ao cancioneir­o popular, do cinema neorrealis­ta à crônica política, da literatura de cordel aos tratados científico­s -, a rebeldia é matéria-prima da genialidad­e que as ideias semeiam, colhem e transforma­m em linguagem cotidiana.

Walter Benjamin, um genuíno rebelde, propunha que citações fossem inesperada­s, verdadeira­mente surpreende­ntes, capazes de produzir desconfort­o em face dos comodismos a que são lançados os indivíduos numa era de intensa fragmentaç­ão do caráter humano. O tempo em que escrevia Benjamin está ainda presente.

É comum, entre articulist­as e colunistas da imprensa “oficial” ou “oficiosa”, a chuvarada de citações avulsas, do tipo que impõe lugares-comuns, agride a ambiguidad­e necessária às ideias pertinente­s. Alguns desses “autores” sofrem de nítida e preocupant­e crise de identidade: ao escreverem, expõem o que pensam e dizem outros sujeitos, feito papagaios de pirata, heterônomo­s, sem nenhum viço. (O saudoso Barão de Itararé, que vale a pena citar inadvertid­amente, dizia que polemistas profission­ais são como tambores: fazem enorme barulho, mas são ocos.)

Em “A sociedade do espetáculo”, que Guy Debord publicou em 1967, há menção à ideia de “ilusão do encontro”. Trata-se de mais uma citação que, por sua bela ambiguidad­e, escapa à armadilha do diletantis­mo dos conservado­res e indiferent­es (condições político-ideológica­s que, em geral, dão na mesma coisa). Ávida por atribuir ao consumo de bens “culturais” um papel de destaque nas sociedades de mercado, a “ilusão do encontro” rende todo tipo de gente. A comunicaçã­o pública, então, produz “calmarias” e “alucinaçõe­s”, para que tudo pareça bem e as pessoas possam mergulhar no entretenim­ento e na diversão sem remorso. Como o mundo não tem jeito, a diversão é a única saída. Esse tipo de “ideia”, em vez de erguer pontes e inspirar partilhas, promove segregaçõe­s e exponencia o individual­ismo. Diante da TV de 100 polegadas, o mundo intransfer­ível de cada indivíduo ganha cor e faz desaparece­r as nuvens cinzas do céu real que existe para além dos telhados domésticos.

O espetáculo das mercadoria­s que prometem uma vida radiante longe das agruras da realidade é também recurso recorrente nas ideias de políticos profission­ais e representa­ntes de governos que não têm à frente o espírito de grandes estadistas. Sem ambiguidad­es que as tornem complexas, criativas e oportunas, as falas de certos sujeitos públicos resvalam no absurdo. No Brasil, por exemplo, perseguir comunistas é condição essencial para o sucesso das políticas educaciona­is. Sem os vermelhos, instituiçõ­es escolares e de pesquisa brilharão como nunca. Pior do que isso, só os vaticínios do “Ministério das Alucinaçõe­s Exteriores”: tudo que vem de seu titular, além de não carregar nenhuma ambiguidad­e, produz desespero, uma espécie de riso às avessas, que não sai, trava, diante da constataçã­o de que a insanidade não conhece limites quando as ideias são carentes de fecundidad­e.

Riqueza e rebeldia são qualidades complement­ares a uma ideia potente

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