Na natureza, com Van Gogh
Filme sobre o pintor mostra sua trajetória inspirada e sua explosão criativa nos últimos anos de vida
Convenhamos: as biopics, ou cinebiografias sobre artistas, configuram um dos territórios mais banais da cinematografia, um âmbito propenso ao academicismo. A figura de Vincent van Gogh foi vampirizada por inúmeros realizadores, de “Sede de Viver” (Lust for Life, Vincente Minelli, 1956), com um icônico Kirk Douglas vivendo o personagem, ao “Van Gogh -Vida e Obra de um Gênio” (“Vincent e Theo” , Robert Altman, 1990), com um Tim Roth abusando de histrionismo, passando por “Van Gogh” (Maurice Pialat, 1990), a menos didática abordagem da figura do pintor holandês e pelo telefilme.
Agora, o pintor e cineasta americano Julian Schnabel oferece uma nova abordagem sobre os últimos e decisivos tempos de Van Gogh, existenciais e de criação artística. Uma abordagem que desenha no horizonte a possibilidade de se penetrar na mente e na imaginação do pintor. Numa cinebiografia atípica, nada convencional, Schnabel tenta com rara sensibilidade (e intimidade) capturar o arrebatamento que Van Gogh experimentou em seu encontro com a natureza e com o ato de criar. Esta é última semana para participar de uma aventura pictórica sem precedentes na galeria das homenagens cinematográficas aos grandes mestres da pintura universal. “No Portal do Paraíso” fica só mais esta semana em exibição na cidade.
O filme é acima de tudo uma espécie de reinvenção artística de um dado período da vida de Van Gogh. Ao revisar o processo criativo de Van Gogh, o que resulta é um filme que exala sinceridade, ainda que reverente, e cuja maior descoberta foi com certeza a eleição de Willem Dafoe, em quem recai todo o poder que emana da narrativa. Com “No Portal da Eternidade”, Julian Schnabel retorna ao tema que lhe é particularmente caro: as artes plásticas, às quais rendeu tributo em “Basquiat - Traços de uma Vida” (1996), sobre o grafiteiro nova-iorquino Jean-Michel Basquiat e sobre o poder transformador da arte. O diretor trabalha como se intimasse o espectador a experimentar as emoções do artista.
O filme está ambientado em Arles e em Auvers-surOise, na França em 1886, em plena efervescência do Impressionismo. Em meio a uma crise de descrença e desespero, Van Gogh conhece Paul Gauguin (Oscar Isaac), que o aconselha a ir rumo ao sul, vale dizer, à região da Provence. Ali, no meio rural de Arles, ele se sente em casa. É onde encontra a fonte da luz. Durante um tempo convive com membros da vanguarda como Gauguin e Paul Cézanne. Uma época de explosão de sua maior genialidade criativa. O que estaria passando na mente do artista? Como ele criava? O que o instigava? Essas e e outras questões sobre o visionário fundador da arte moderna Julian Schnabel tenta decifrar.
O que parece igualmente notável nesta proposta é que o roteiro (aparentemente construído à base de vinhetas especulativas sobre o que poderia ter acontecido ao personagem naquele espaço de tempo) se afasta da imagem do jovem atormentado, empobrecido, um pouco louco, aquela imagem vulgarizada que abasteceu o grande público ao longo do tempo e que embasou a trama da interessante animação “Com Amor, Van Gogh” (2017). A opção luminosa de Schnabel foi tecer uma visão criativa da alegria da arte de Van Gogh no rastro de sua lendária infelicidade.
Absorvido pela inspiração de seu biografado, Schnabel propõe um desafio muito mais visceral: fazer com que o espectador mergulhe nos olhos de um pintor no momento da criação. É como se estivéssemos num campo aberto ao lado do gênio. “Sua arte era completamente realista e sobrenatural”, diz um crítico de Van Gogh na narrativa em off. A afirmação pode ser aplicada facilmente a “No Portal da Eternidade”.
O pictorialismo da fotografia - o céu, as cores dos campos ondulados, a vegetação, o solo acidentado -, captada por uma câmera sísmica e sobressaltada, busca e consegue reinterpretar, com necessária sutileza (e às vezes sem ela...), as atmosferas de suas pinturas. Por isso, e por uma generosa gama de detalhes, o filme é feito de momentos, fragmentos, impressões não apenas visuais, mas também sonoras -, e embora nos apresente um Van Gogh como uma lúcida alma atormentada (os diálogos com o padre e o militar no hospício são notáveis nesse sentido) trancada em uma batalha com seus problemas mentais, a visão do filme sobre o artista é honesta e incisiva. E sem abrir mão de um descarado romantismo.
Este Vincent capaz de arrebatar o mais frio dos críticos é retratado com enorme poder, intensa luminosidade e rara inspiração por Willem Dafoe. Ele compõe um Van Gogh como deve ter sido e como gostaríamos que fosse: um problemático homem apaixonado pelo mundo, com a transcendência da natureza que considerava sagrada.