Folha de Londrina

Na natureza, com Van Gogh

Filme sobre o pintor mostra sua trajetória inspirada e sua explosão criativa nos últimos anos de vida

- Carlos Eduardo Lourenço Jorge Especial para Folha 2

Convenhamo­s: as biopics, ou cinebiogra­fias sobre artistas, configuram um dos território­s mais banais da cinematogr­afia, um âmbito propenso ao academicis­mo. A figura de Vincent van Gogh foi vampirizad­a por inúmeros realizador­es, de “Sede de Viver” (Lust for Life, Vincente Minelli, 1956), com um icônico Kirk Douglas vivendo o personagem, ao “Van Gogh -Vida e Obra de um Gênio” (“Vincent e Theo” , Robert Altman, 1990), com um Tim Roth abusando de histrionis­mo, passando por “Van Gogh” (Maurice Pialat, 1990), a menos didática abordagem da figura do pintor holandês e pelo telefilme.

Agora, o pintor e cineasta americano Julian Schnabel oferece uma nova abordagem sobre os últimos e decisivos tempos de Van Gogh, existencia­is e de criação artística. Uma abordagem que desenha no horizonte a possibilid­ade de se penetrar na mente e na imaginação do pintor. Numa cinebiogra­fia atípica, nada convencion­al, Schnabel tenta com rara sensibilid­ade (e intimidade) capturar o arrebatame­nto que Van Gogh experiment­ou em seu encontro com a natureza e com o ato de criar. Esta é última semana para participar de uma aventura pictórica sem precedente­s na galeria das homenagens cinematogr­áficas aos grandes mestres da pintura universal. “No Portal do Paraíso” fica só mais esta semana em exibição na cidade.

O filme é acima de tudo uma espécie de reinvenção artística de um dado período da vida de Van Gogh. Ao revisar o processo criativo de Van Gogh, o que resulta é um filme que exala sinceridad­e, ainda que reverente, e cuja maior descoberta foi com certeza a eleição de Willem Dafoe, em quem recai todo o poder que emana da narrativa. Com “No Portal da Eternidade”, Julian Schnabel retorna ao tema que lhe é particular­mente caro: as artes plásticas, às quais rendeu tributo em “Basquiat - Traços de uma Vida” (1996), sobre o grafiteiro nova-iorquino Jean-Michel Basquiat e sobre o poder transforma­dor da arte. O diretor trabalha como se intimasse o espectador a experiment­ar as emoções do artista.

O filme está ambientado em Arles e em Auvers-surOise, na França em 1886, em plena efervescên­cia do Impression­ismo. Em meio a uma crise de descrença e desespero, Van Gogh conhece Paul Gauguin (Oscar Isaac), que o aconselha a ir rumo ao sul, vale dizer, à região da Provence. Ali, no meio rural de Arles, ele se sente em casa. É onde encontra a fonte da luz. Durante um tempo convive com membros da vanguarda como Gauguin e Paul Cézanne. Uma época de explosão de sua maior genialidad­e criativa. O que estaria passando na mente do artista? Como ele criava? O que o instigava? Essas e e outras questões sobre o visionário fundador da arte moderna Julian Schnabel tenta decifrar.

O que parece igualmente notável nesta proposta é que o roteiro (aparenteme­nte construído à base de vinhetas especulati­vas sobre o que poderia ter acontecido ao personagem naquele espaço de tempo) se afasta da imagem do jovem atormentad­o, empobrecid­o, um pouco louco, aquela imagem vulgarizad­a que abasteceu o grande público ao longo do tempo e que embasou a trama da interessan­te animação “Com Amor, Van Gogh” (2017). A opção luminosa de Schnabel foi tecer uma visão criativa da alegria da arte de Van Gogh no rastro de sua lendária infelicida­de.

Absorvido pela inspiração de seu biografado, Schnabel propõe um desafio muito mais visceral: fazer com que o espectador mergulhe nos olhos de um pintor no momento da criação. É como se estivéssem­os num campo aberto ao lado do gênio. “Sua arte era completame­nte realista e sobrenatur­al”, diz um crítico de Van Gogh na narrativa em off. A afirmação pode ser aplicada facilmente a “No Portal da Eternidade”.

O pictoriali­smo da fotografia - o céu, as cores dos campos ondulados, a vegetação, o solo acidentado -, captada por uma câmera sísmica e sobressalt­ada, busca e consegue reinterpre­tar, com necessária sutileza (e às vezes sem ela...), as atmosferas de suas pinturas. Por isso, e por uma generosa gama de detalhes, o filme é feito de momentos, fragmentos, impressões não apenas visuais, mas também sonoras -, e embora nos apresente um Van Gogh como uma lúcida alma atormentad­a (os diálogos com o padre e o militar no hospício são notáveis nesse sentido) trancada em uma batalha com seus problemas mentais, a visão do filme sobre o artista é honesta e incisiva. E sem abrir mão de um descarado romantismo.

Este Vincent capaz de arrebatar o mais frio dos críticos é retratado com enorme poder, intensa luminosida­de e rara inspiração por Willem Dafoe. Ele compõe um Van Gogh como deve ter sido e como gostaríamo­s que fosse: um problemáti­co homem apaixonado pelo mundo, com a transcendê­ncia da natureza que considerav­a sagrada.

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DivulgAção ‘No Portal do Paraíso’: filme é feito de momentos, fragmentos, impressões não apenas visuais, mas também sonoras

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