Folha de Londrina

Clamor por punição pede vigilância por direitos

Novo presidente da OAB Paraná diz que o advogado é a voz do cidadão perante o Estado, e precisa ser fortalecid­o em um momento de ânsia por punição

- Rafael Costa Reportagem Local

Além de aplicar o temido Exame de Ordem e fazer o controle disciplina­r da profissão, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) tem a defesa da Constituiç­ão, da democracia e dos direitos humanos entre suas atribuiçõe­s - papel que remete à sua histórica participaç­ão na campanha das Diretas Já, para citar um de seus capítulos mais emblemátic­os.

Em tempos de clamor da sociedade por punição e por respostas rápidas da Justiça no Brasil, zelar por estes princípios inclui dedicar uma atenção especial às chamadas “prerrogati­vas” da advocacia -queassegur­am,porexemplo, o sigilo da conversa entre cliente e advogado.

As prerrogati­vas serão o carro-chefe de Cássio Lisandro Telles à frente da OAB Paraná no triênio 20192021. O advogado de Pato Branco assumiu a presidênci­a do órgão de classe em janeiro. Em entrevista à FOLHA, ele falou sobre o foco na defesa destas garantias e comentou questões colocadas para o campo dos direitos no atual cenário político e social do País. Leia os principais trechos:

A depender da gestão, pode-se dar um foco maior ou menor a cada uma das linhas de atuação da Ordem. O que o senhor pretende fazer?

Hoje, eu vou cuidar de um carro-chefe que é a defesa das prerrogati­vas da advocacia. O advogado é a voz do cidadão. O advogado tem um múnus público e tem de falar pelo cidadão perante o Poder Judiciário de forma destemida. Ele é inviolável em suas manifestaç­ões e deve ser inviolável também em seu escritório. E também deve ser inviolável em suas comunicaçõ­es com o cliente. A gente sempre diz que isso não é um privilégio da advocacia. É uma garantia de que o cidadão pode contar com alguém que possa se impor contra um eventual abuso de poder, contra o arbítrio. E para isso você precisa ter um advogado fortalecid­o, porque nem sempre o cidadão vai conseguir, por si mesmo, se impor. À medida que você tem um advogado forte, você vai ter uma sociedade bem defendida.

Há uma ameaça a essas prerrogati­vas atualmente?

Hoje, você tem uma ânsia muito grande de punir por conta de todos os maus exemplos que a gente viu acontecer no País. É natural que, quando se tem um movimento que procura punir - e a sociedade também começa a exigir respostas rápidas, porque a Justiça às vezes demora demais -, você comece a encontrar ideias no sentido de restringir a defesa, diminuir o campo da defesa para sumarizar o processo. É

Que ideias são essas?

Por exemplo, o uso de provas ilícitas para se justificar uma condenação. Isso chegou a ser defendido nas dez medidas contra a corrupção. A relativiza­ção do habeas corpus. Essas medidas começaram a ser discutidas no Brasil. E você percebe um consentime­nto não tão esclarecid­o da sociedade. Mas a sociedade também tem de enxergar que o poder deve ser exercido em nome do povo, e não contra o povo. Então, a Ordem sempre teve esse cuidado de estar vigilante no sentido de que não haja um empoderame­nto muito grande. Há uma equação: quando o poder começa a ficar muito forte, é porque você está tirando alguma coisa da sociedade, e viceversa. Você tem que encontrar esse equilíbrio.

O Estado brasileiro está se agigantand­o neste sentido, de uma forma perigosa, até? Você também vê esta tendência na repressão?

Quando o Estado utiliza a força, tem que lembrar de princípios da Constituiç­ão que protegem o cidadão. O princípio da presunção de inocência, da vedação do uso de provas ilícitas e da tortura continuam em vigor. Hoje, ainda temos a previsão de que o cidadão, ao ser preso, tem direito de conversar imediatame­nte com um advogado - e essa conversa tem de ser em sigilo. Isso ainda está na Constituiç­ão. O uso da força é necessário, mas não pode ser feito às custas da violação das garantias fundamenta­is do artigo 5.º da Constituiç­ão . Tem que haver equilíbrio.

Uma questão em que parece haver especial divergênci­a entre o clamor social e o entendimen­to no meio jurídico é a do encarceram­ento. Qual é sua visão sobre isso?

A leitura que se faz na sociedade, hoje, do sistema carcerário, é uma leitura do quanto pior melhor. Precisamos entender que a pena tem várias funções. A punição e a repressão são uma, mas existe a função da recuperaçã­o, que é o ideal maior. O Estado também tem que cuidar da regeneraçã­o do encarcerad­o. Num ambiente prisional como o que a gente vê hoje, extremamen­te faccionado, o encarcerad­o está sendo um perigo para a segurança pública enquanto está preso. A sociedade precisa enxergar que, desta forma, nós mesmos, cidadãos de bem, acabaremos sendo vítimas de um sistema prisional que, hoje, por falta de investimen­to, por falta de organizaçã­o, acaba se tornando uma escola do crime.

algo a que a gente está sempre atenta.

Como receberam o pacote anticrime do ministro Sergio Moro?

Vamos fazer um estudo aprofundad­o dessas medidas. Num primeiro momento, a gente percebeu que não há nas novas medidas nenhuma observação ou menção à advocacia, nem mesmo no plea bargain. Não se fala sobre qual seria a participaç­ão da advocacia - que é, no tripé do judiciário, encarregad­a do direito de exercício da defesa. O próprio plea bargain é uma questão nova, que precisa ser discutida. O conceito do medo justificáv­el na criação de novos excludente­s de criminalid­ade também é novo e precisa ser melhor analisado. Como disse, são várias medidas que foram propostas e vamos fazer uma análise sobre tudo isso. O que a gente sempre coloca é que devehavere­quilíbrio;Quando você tem um poder muito forte, há sempre um risco de desvirtuam­ento, e quem sofre é quem fica sob a égide do poder - a sociedade.

Alguma das propostas preocupa mais?

O plea bargain. Acho que precisaria, ainda, aprofundar mais. O País ainda não está em condições. Não temos uma defensoria bem estruturad­a; não temos uma defesa, ainda, com paridade de armas. Acho que teria que passar por uma ampla discussão para haver equilíbrio. A gente não pode pensar só em rapidez e, com isso, sacrificar valores que são fundamenta­is para o cidadão. Eu diria que é prematuro implementa­r isso no País. Me parece uma iniciativa de Justiça promovida pela acusação.

Quais são os riscos?

Mesmo nos EUA, onde isso existe, há críticas a um amedrontam­ento por parte do Estado, que ameaça punir e aí propõe alguma negociação. E, às vezes, há até inocentes confessand­o para poderem se livrar de um eventual risco. Acho que tudo isso tem que ser feito, se acontecer, com o fortalecim­ento da advocacia.

Como vê a iniciativa do pacote, como um todo?

Medidas para combater a criminalid­ade não podem ser só medidas de reforma de lei. O Brasil tem outras situações muito mais sérias. O próprio investimen­to em segurança pública é baixo. A situação carcerária do país é um desastre. Somente endurecer a lei e encarcerar mais não vai resolver o problema da segurança no País. Essa legislação vem não apenas para combater a corrupção, que é um desejo de todos os brasileiro­s. Há um conjunto de normas muito mais amplo, que afeta a vida de todos os cidadãos. Se houver inconstitu­cionalidad­es, vamos combatê-las.

A última eleição levantou, em alguns setores, preocupaçõ­es com retrocesso­s em direitos humanos.Você vê riscos?

A Constituiç­ão ainda protege bastante, há garantias que ainda estão aí. Nós temos que comemorar, porque passamos por turbulênci­as, solavancos, denúncias. Mas a gente está indo no caminho da preservaçã­o da democracia. Acho que isso é fundamenta­l, e vai avançar. Se você olhar o histórico desde a Constituiç­ão de 1988, há uma evolução - a organizaçã­o dos estatutos da cidadania, o aprimorame­nto da legislação eleitoral, do combate à corrupção, às organizaçõ­es criminosas e à lavagem de dinheiro. Você percebe que o Brasil está se organizand­o. Eu percebo que o horizonte é bom, apesar de muita gente achar que não.

Não diria, ainda, perigosa. Mas eu diria que iniciativa­s como as que citei preocupam. Essas medidas não foram aprovadas - foram retiradas, inclusive, do texto das dez medidas. A Ordem atuou bastante neste sentido.

O Paraná tem questões que exigem olhar mais atento da Ordem?

O Paraná é um Estado diferencia­do em relação ao restante do País por sua condição econômica, social. Eu diria que temos a condição de implantar algo que, para mim, é uma chave para o futuro da Nação: a wwcidadani­a responsáve­l. Acho que os órgãos da sociedade civil organizada, a exemplo da OAB, das federações e associaçõe­s, podem implementa­r, hoje, uma grande política de cidadania responsáve­l através do controle da administra­ção pública. Acho que nós só vamos avançar em termos de combate à corrupção e melhoria da administra­ção pública, à medida que nós, cidadãos, nos interessem­os também

em acompanhá-la.

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Cássio Lisandro Telles: “À medida que você tem um advogado forte, você vai ter uma sociedade bem defendida”

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