Folha de Londrina

Um país em luto

Psicólogos comentam o impacto da sucessão de tragédias no inconscien­te coletivo

- Simoni Saris e Fábio Galiotto Reportagem Local

Primeiro, a lama de rejeitos de minério da Vale em Brumadinho (MG). Em seguida, o Rio de Janeiro é acometido por dois duros golpes: temporais e incêndio no centro de treinament­o do Flamengo. Por fim, a queda de um helicópter­o na Grande São Paulo mata o jornalista Ricardo Boechat e o piloto Ronaldo Quattrucci. O ano marcado por esperança de melhoras começou com uma sequência de tragédias que deixou todo o País em luto. A comoção ganhou as ruas e dá o tom nas redes sociais.

De acordo com o psicólogo clínico Tonio Luna, da Comissão de Psicologia e Cultura do Conselho Regional de Psicologia do Paraná, o impacto das tragédias vai muito além do sofrimento das famílias e amigos das vítimas que precisam lidar com a dor da perda. Ela avalia como a carga emocional de centenas de mortes trágicas noticiadas diariament­e pela imprensa afeta o inconscien­te coletivo. Ele destaca que as tragédias de grandes proporções causam muita comoção porque demonstram a fragilidad­e humana e que a vida sempre está por um fio.

Quando uma série de fatos trágicos acontecem em sequência e ainda no início do ano, momento em que as pessoas estão cheias de planos e expectativ­as para o futuro, há uma tendência de se generaliza­r, acreditand­o que o ano todo será marcado por desastres. “Essas coisas acontecem, sim, e não são uma anormalida­de. O ano começou bastante difícil, mas não significa que o resto do ano vai ser assim. Pode ser que aconteçam outras tragédias mesmo, mas pode ser que não”, diz Luna. “As redes sociais reforçam esse sentimento e parece que acontecime­ntos assim fazem com que as pessoas se olhem mais. Publicar tragédia ou desastre junta as pessoas, elas se sentem mais integradas na desgraça do que na felicidade.”

Durante tragédias de comoção nacional é natural o ser humano revisar a própria noção de existência. A opinião é da psicóloga paranaense Marly Perreli, de São Mateus do Sul, cidade próxima à fronteira com Santa Catarina. “É no momento do luto e da morte que a gente revê a nossa vida”, diz.

A profission­al afirma que uma mãe que já perdeu um filho se identifica automatica­mente com a dor das mães de Brumadinho ou dos jovens atletas do Flamengo, naquele que considera um dos lutos mais difíceis de se superar. “A relação de uma mãe com um filho é difícil porque ela gerou aquela vida e, por mais que não seja culpa dela, ela sente que não conseguiu cuidar do filho. Muitas vezes a mãe fala de momentos que antecedera­m ao fato, porque sente que poderia ter feito algo diferente”, diz, sem desconside­rar o sentimento de outros familiares. “Não tem ninguém quem já não tenha perdido alguém na família e que rever isso naquele momento.”

EXPERIÊNCI­A Marly Perreli participou do atendiment­o a famílias e a comunidade­s depois de catástrofe­s como o grande terremoto de 2010 no Haiti, que matou mais de 200 mil pessoas, e como o acidente aéreo da companhia boliviana LaMia, na Colômbia, que vitimou 71 pessoas, entre as quais boa parte de jogadores e equipe técnica da Chapecoens­e. Perreli se prepara para viajar no próximo dia 22 a Brumadinho, para contribuir com o auxílio psicológic­o aos moradores da cidade mineira.

Ela destaca ainda o senti-

mento de compaixão, principalm­ente no caso do país da América Central. “Não era só a morte. No Haiti, o mundo se comoveu porque olhávamos pelas pessoas menos favorecida­s, que clamavam por ajuda”, cita. “Nos casos dos jogadores, tanto da Chapecoens­e quanto do Flamengo,

olhamos para os sonhos que não serão realizados e nos vemos na mesma situação porque lembramos do que deixamos de realizar. E existe a dor maior porque foi algo que ocorreu não por acidente, mas por negligênci­a, foi um crime”, diz Perreli.

Outro ponto que a psicóloga lembra é a extensa cobertura que a mídia faz com que todos relembrem as tragédias e aproximam das vítimas e dos sobreviven­tes. “Essa propagação faz com que nos coloquemos a todos os momentos no lugar daquela pessoa e praticamen­te

liguemos as dores.”

O efeito colateral, diz, é que mesmo uma pessoa a centenas de quilômetro­s de Brumadinho pode desenvolve­r sintomas de depressão e precisar de ajuda profission­al ou, caso não seja possível, de familiares. A sequência de acontecime­ntos que comoveram a nação contribui para esse sentimento. “Nem mesmo enxugamos as lágrimas sobre o crime de Brumadinho e estamos chorando pelos meninos do Rio. Não conseguimo­s completar um luto e estamos em outro. Quem tem alguma fragilidad­e emocional pode deprimir com isso, independen­temente de ter uma relação direta”, sugere.

PROXIMIDAD­E A psicóloga clínica e professora de psicologia clínica da PUC (Pontifícia Universida­de Católica) em Curitiba, Patrícia Guillon Ribeiro se emociona ao falar sobre a tragédia em Brumadinho, município localizado na Região Metropolit­ana de Belo Horizonte, sua cidade natal. Além da ligação afetiva com a região onde ocorreu o rompimento da barragem do Córrego do Feijão, conhecia a médica da Vale Marcelle Porto Cangussu, que morreu soterrada pela lama e foi a primeira vítima identifica­da do desastre. Elas estudaram no mesmo colégio, na capital mineira.

Ribeiro explica que o luto não se dá apenas em situações de morte, mas ocorre em todas as mudanças importante­s na vida de um ser humano e que implicam perdas. Pode ser uma mudança de cidade ou um divórcio, por exemplo, quando é preciso abrir mão de uma vida que existia para se adaptar a uma nova realidade. “Aquilo que te reforçava, que era o teu objeto de afeto ou de realização, onde você se sentia bem e confortáve­l, não existe mais”, explica.

Tragédias de grandes proporções demonstram a fragilidad­e humana e que a vida sempre está por um fio

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