O drama de não ter um corpo para sepultar
Há três anos, o motorista Odair José Martins desapareceu em um rio em Rolândia durante uma tempestade
Três anos após o corpo de Odair José Martins ser arrastado pelas águas do rio Bandeirantes do Norte, em Rolândia, mais de cem famílias vítimas da tragédia de Brumadinho (MG) também vivem a situação de não terem o corpo de seus entes de volta. A incerteza continua, mas Letícia Lunardi, 30, viúva do motorista, tenta seguir em frente.
“O dia que eu vi a notícia de Brumadinho, vendo aquelas pessoas saindo da lama, veio tudo na minha cabeça, porque é a mesma coisa. Eu assisti uma vez só e não quis mais. Fico pensando que as famílias lá estão passando um sufoco”, afirma. Sente, porque Lunardi viveu a mesma situação na busca sem respostas pelo marido levado pela enxurrada em janeiro de 2016.
A ausência do corpo fechou a oportunidade de finalizar um ciclo, tornando todo o processo em luto confuso. “Não sei dizer se vivi um luto, ficou vago. Quando você vê o corpo e enterra, sabe que está ali e acabou, você segue. No meu caso é complicado, nem a missa de sétimo dia a gente fez, porque na época ainda estava procurando”, lamenta.
Levou mais de um ano de processo burocrático para organizar a documentação e o tempo foi levando à aceitação de que o marido não iria mais aparecer, apesar da esperança resistente. “Sempre fica aquela dúvida, mas hoje estou seguindo em frente, pensando que se surgir alguma coisa, depois a gente resolve. As pessoas perguntam estado civil, eu falo ‘viúva’. É estranho, falo porque está nos papéis, mas eu não me sinto assim.”
A certidão de óbito foi obtida depois de seis meses e marca a data do acidente. “O atestado não deu conforto, para ter conforto é ter o corpo, só vou ter sossego, um pouquinho de paz, quando encontrar, porque sempre vai ficar aquele vazio”, afirma.
O DIA
“A água levou o ônibus e o Odair estava dentro.” O irmão da vítima deu a notícia a Letícia Lunardi por volta das 20h de 11 de janeiro de 2016. Chovia muito e o motorista responsável por levar funcionários de uma empresa tentou passar com o ônibus – sem passageiros - por cima da ponte alagada. O veículo afogou e a água subiu mais rápido do que se esperava. Ônibus e motorista foram levados, mas só o veículo foi encontrado.
“Irmãos, cunhados, até desconhecidos foram procurar. Meu pai ‘pousou’ no rio, foi todo mundo passar a noite no rio. Eu fiquei em casa com a minha sogra. Achavam uma camisa, não era dele. Achavam um sapato, não era dele. Acharam um monte de coisa, nada era dele”, recorda.
Foram dias procurando, sobrevoando o local com helicóptero, com ajuda de cães farejadores e tratores para retirar a terra em torno do rio em busca de alguma pista. Depois de dez dias, as buscas foram encerradas. “Depois fui às cidadezinhas em volta, levei cartazes, porque vai que ele bateu a cabeça e saiu andando por aí. Entreguei nas mãos de Deus e esperei.”
Dois anos depois, vivendo sozinha, percebeu que estava fazendo mal respirar o ar da cidade onde tudo lem- brava o marido. “O ônibus, o ponto onde a gente se encontrava, todo mundo era conhecido, eu comecei a passar mal, com crise de ansiedade e o médico indicou tratamento com psicólogo”, menciona.
AJUDA
“Se você não buscar ajuda, não vai conseguir seguir”, afirma Lunardi. Para aliviar o sofrimento, saiu de Rolândia e voltou para a casa dos pais, em Ibiporã, onde nasceu e cresceu. Faz tratamento com médicos e psicólogos e voltou a trabalhar depois de dois anos da demissão do antigo emprego, quando tudo aconteceu.
Não é a primeira vez que Lunardi passa por um processo difícil. Há 16 anos, perdeu o irmão em um assalto na casa da família. “Eu tive problemas na época, depois que me casei, fui para Rolândia, fiz amigos, a vida estava ótima e veio isso. Comecei a passar mal sozinha lá, então meu pai pediu para eu voltar. Comecei a fazer tratamento e deu uma boa melhorada”, afirma.
Lunardi hoje consegue seguir em frente, consciente de que vai sempre conviver com a lembrança. Datas comemorativas, fotos nas redes sociais e casos como as tragédias das chuvas no Rio de Janeiro e em Brumadinho fazem a memória ressurgir.
Com a experiência que tem, tenta confortar quem está passando pela mesma situação. “É difícil. Só quem passa entende. Elas precisam ter muita fé e seguir em frente, porque não é fácil. Tem que se apoiar em amigos e na família. E que a empresa possa ajudar em tudo como eu tive o apoio aqui, porque eu sei, aqui foi um só, lá foram mais de cem. Faço orações por essas famílias.”
Hoje, mais forte, ela consegue olhar para frente sem ressentimentos com o passado. “Minha consciência com Odair está tranquila, minha parte de esposa eu fiz, a gente nunca brigou, nunca discutiu, ficamos sempre juntos”, relata sobre os quase quatro anos de união. O sofrimento ainda abala, mas agora ela tira aprendizado. “Aproveitar o hoje, falar que ama, porque você não sabe o dia de amanhã. Então hoje eu aproveito, não deixo passar, porque o amanhã ninguém sabe”, ensina.