Violência em cima do salto
Em tempos de flexibilização de porte de armas, num dos países mais violentos do mundo, um comentário numa rede social chamou-me a atenção por indicar que há um elemento fortemente fetichista embutido na decisão de ter um revólver. Uma cabeleireira correu para tirar seu porte de armas e orgulha-se de agora sentir-se ‘empoderada’, imaginando ir ao trabalho de “salto alto e revólver na cintura.” A dama decerto fantasia estar num ‘saloon’ e não num salão de beleza.
Essas mulheres talvez tomem como exemplo o que veem nas telas, porque o cinema é pródigo em armar heroínas ou vilãs, produzidas da cabeça aos pés com roupas pretas, botas, cinturões e até luvas, fortalecendo a imagem feminina com signos que revelam beleza, sensualidade e poder.
Mal sabem as mocinhas que estamos num país em que metade das mulheres assassinadas em 2016 foram vítimas de armas de fogo, num total de 2.339 mulheres, segundo dados disponíveis no sistema Datasus, do Ministério da Saúde, em levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz.
Desse total, 560 foram mortas dentro de casa e especialistas afirmam que a proximidade com as armas induz à violência até em discussões banais. Trata-se da facilidade de ter ao alcance das mãos o objeto que pode definir quem pode mais.
Mas os ícones das ‘empoderadas’ estão todos aí, no imaginário que aprecia e gera uma cultura de violência mostrando mulheres se dando bem com as armas. O cinema é pródigo em exemplos com filmes como “Bandidas” (2006), dirigido por Luc Besson, com Penélope Cruz e Salma Hayek formando uma dupla de assaltantes de bancos. Há também “Salt” (2010), dirigido por Phillip Noyce, com Angelina Jolie no papel de uma assassina implacável. Ou “As Bem Armadas” (trocadilho infame com “bem amadas” no título nacional), dirigido por Paul Feig e lançado em 2013, com Sandra Bullock interpretando uma policial encarregada de investigar um poderoso traficante de drogas.
Claro que nas telas todas as heroínas saemse bem, mas essa não é a realidade das Marias e Joanas mortas por armas de fogo, num índice alto de assassinatos dentro de casa consumados por maridos, namorados, pais, irmãos e até filhos violentos.
Observando exemplos como os da cabeleireira ‘empoderada’, passam pela minha cabeça perguntas inadiáveis: será que elas pensam que vão reverter as estatísticas com a posse de um revólver? Ou o ‘empoderamento’ vai se tornar o tiro que sai pela culatra no plano doméstico e social?
O fetiche por armas - e temos exemplos recentes de ‘colecionadores’ de todos os calibres - para mim representa, no plano psicológico, o fetiche pela morte. Porque as armas não servem senão para matar, essa é sua utilidade máxima, embora armamentistas reforcem o fator segurança em detrimento da violência que é, de fato, seu gozo.
Homens e mulheres fetichistas, dentro de um espectro perverso de fantasia, sentem-se ‘empoderados’ e fica cada vez mais distante a ideia de um mundo pacífico para o qual deveríamos encaminhar nossos sentidos e percepção de segurança. O que vemos é o oposto disso.
Dá uma tristeza enorme ver que, no fim das contas, tem gente que se sente feliz por incorporar a imagem de ‘pistoleiros e pistoleiras’, com ou sem salto, fantasia anacrônica que sai dos filmes para a realidade de um país que atesta seu atraso em 2019. Excluindo-se o direito à posse de armas para quem vive em zonas rurais ou comunidades distantes, nada justifica tirar o foco da segurança pública para torná-la um caso de segurança privada. Não custa lembrar que não apenas ‘cidadãos de bem’ terão mais armas. A facilidade da posse cai também como uma luva para pistoleiros de verdade e milícias que podem alegar defesa para praticar seus crimes.
Vamos de mal a pior, mas tem quem veja apenas a ‘beleza de uma Colt’ numa sociedade fálica e violenta. Estamos assistindo a uma enxurrada de valores invertidos numa sociedade em franca decadência que não quer ser pacificada, mas aumentar seu potencial, inclusive psicológico, de morte e violência ‘em cima do salto’.