O Papa Francisco nas Arábias
No ano 711, 79 anos depois da morte do profeta Maomé, os Mouros, sob o comando do general berbere Tárique, invadiram a Península Ibérica. Aguerridos e imbuídos de um espírito expansionista proporcionado pela própria índole da sua fé islâmica, eles sentiam a intrínseca necessidade de combater os infiéis e trazê-los para a sua crença. Anos mais tarde, a maior parte dos mouros da península, era constituída por descendentes de ibéricos convertidos ao islamismo. A convivência durante quatro séculos não foi propriamente belicosa, exceto com a reconquista cristã e as tentativas dos reis católicos de empurrar os sarracenos para o sul, expulsando-os da Europa. O que só veio a acontecer definitivamente em 1492, 39 anos depois da queda de Constantinopla. A coexistência entre muçulmanos e cristãos na Ibéria foi um exemplo, numa Idade Média dada a conflitos e preconceitos. Mais tarde, o renascimento europeu do século XV e XVI muito vai dever a este período rico da “Espanha muçulmana”. Embora pareça paradoxal a uma fé dita expansionista, a maior herança dos mouros, além do legado cultural e científico, foi talvez a sua crença na convivência pacífica entre árabes, berberes e europeus. Não foi, porém, um episódio isolado. No Oriente Médio do século VII ao século XIX, encontramos várias comunidades cristãs florescentes em ambientes majoritariamente islâmicos. No próprio Império Otomano, salvo exceções, a convivência era pacífica.
Comecei este artigo lembrando estes fatos, pois me parece que na mente do papa Francisco que agora visitou a Península Arábica e do também Francisco de Assis que em 1219 visitou o então Sultão do Egito, Al Kamil, há algo convergente, no sentido de aproximação com o Islão e na convicção de que as duas religiões monoteístas poderão resgatar a sua essência e ter um papel decisivo para a paz. A peregrinação papal também não é inédita no objetivo que a conduz. Ao visitar Israel em 2014, Francisco era imbuído do mesmo sentimento.
Nesta viagem aos Emirados, junto com Ahmed el-Tayeb, o grande imã da Universidade Al-Azhar, o papa assinou um importante documento. Ali se exige “liberdade de culto”, a “promoção de uma cultura de tolerância” e “completa cidadania” para as minorias. Foi explícita a vontade do papa em provocar um diálogo entre cristãos e muçulmanos”.
Se em Israel, ele lembrou a saga dos palestinos na frente das autoridades judaicas, na península, ele não deixou por menos. No encontro com os príncipes da coroa e ministros, classificou a guerra do Iêmen como sendo de “miserável crueza” e criticou “a lógica do poder armado, de armar fronteiras, de erguer muros”. Há no papa o nobre sentimento de acreditar que a verdade está presente em todas as religiões e que elas, sem exceção, podem e devem contribuir para o processo de pacificação da humanidade. Não se trata de ingenuidade. É sim, como já fez João Paulo II, um mea culpa sobre a sua própria religião e a provocação de que outras o façam para o bem do diálogo. Jamais o compromisso de alguma religião pode ser com o erro e com a violência!
Ao visitar o berço da religião islâmica, tão perto da cidade de Meca, o papa aponta para a redescoberta do islamismo original e a possibilidade de resgatar elementos que estão presentes nas duas religiões e que muito as podem aproximar. A Igreja Católica, avançou desde o século XIX e o fez principalmente com o Vaticano II; não será tão fácil ao islamismo fazê-lo, com tantas divisões internas que dão ainda origem a conflitos terríveis entre países irmãos.
A ponte de Roma com as Arábias é audaciosa e corajosa. Passível de muitas críticas. Seria superficialidade achar que o papa deseja apenas que os católicos ali sejam bem tratados! Ele quer sim, que em nome do islão, os islâmicos avancem, estabelecendo pontes entre si e associando ao seu enriquecimento material, os pilares de uma civilização em que o respeito pelas minorias e os pobres se configure. Aqui está a profundidade da visita.
MANUEL JOAQUIM RODRIGUES DOS SANTOS
é padre na Arquidiocese de Londrina
Jamais o compromisso de alguma religião pode ser com o erro e com a violência