Efeito colateral do sistema
‘Sobrevivendo no Inferno’, álbum dos Racionais MC’s, ganha versão em livro e passa a integrar a lista de leitura obrigatória para o vestibular da Unicamp
No final de 2018 a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) anunciou os novos nomes das obras de leitura obrigatória para o vestibular de 2020. A grande novidade da lista estava no fato de aparecer o álbum “Sobrevivendo no Inferno” do grupo Racionais MC’s.
Para espanto dos defensores da alta cultura literária, um disco de rap aparecia ao lado de obras de autores como Machado de Assis, Érico Veríssimo, Guimarães Rosa, Luiz de Camões, Antônio Vieira, José Saramago e Nelson Rodrigues. Espanto semelhante ocorrido em 2016, quando o compositor Bob Dylan foi laureado com o prêmio Nobel de Literatura.
Lançado originalmente em 1997, o álbum vendeu mais de 1,5 milhões de cópias de maneira independente. Outros mais 1,5 milhões em cópias piratas são estimadas. “Sobrevivendo no Inferno” figura na 14ª posição na lista dos 100 melhores discos da música brasileira da revista Rolling Stone.
Aproveitando a decisão da Unicamp, a editora Companhia das Letras está lançando “Sobrevivendo no Inferno” em formato de livro. O volume traz as letras do álbum e um ensaio de Acaum Silvério de Oliveira, professor de literatura brasileira da Universidade de Pernambuco.
O começo da primeira letra do álbum deixa claro a postura de todas as letras subsequentes: “60% dos jovens da periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial / A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras / Nas universidade brasileiras apenas 2% do alunos são negros / A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo / Aqui que fala é Primo Preto, mais um sobrevivente”.
“Sobrevivendo no Inferno” é um retrato perturbador dos jovens das periferias urbanas e das favelas brasileiras. Um retrato frio e realista desenhado por uma ótica interna, não por um olhar externo. Pobreza, violência, crime, preconceito, droga e muito mais.
Na opinião de Acaum Silvério de Oliveira, a proposta das letras está em desenvolver um espaço discursivo em que os cidadãos periféricos puderam se apropriar da própria imagem, construindo para si uma voz que mudaria a forma de enxergar e vivenciar a pobreza no País. Palavras suas: “Mais do que simplesmente representar o cotidiano periférico em crônicas poderosas, a obra dos Racionais ajudou a fundar uma nova subjetividade, criado condições para aquilo que o sociólogo Tiaraju D’Adrea define como ‘sujeito periférico’: o morador da periferia que assume a sua condição, tem orgulho desse lugar e age politicamente a partir dele. O termo ‘periferia’ passaria a designar não apenas ‘pobreza e violência’, mas também ‘cultura e potência’, confrontando a lógica genocida do Estado por meio da elaboração coletiva de outros modos de dizer.” Dinheiro... Não tive pai, não sou herdeiro
Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal Por menos de um real minha chance era pouca Mas se eu fosse aquele moleque de touca Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca De quebrada, sem roupa, você e sua mina Um, dois, nem me viu, já sumi na neblina Mas não...
Permaneço vivo, prossigo a mística
Vinte e sete anos contrariado a estatística Seu comercial de TV não me engana
Eu não preciso de status nem fama
Seu carro e sua grana já não me seduz
E nem a sua puta de olhos azuis
Sou apenas um rapaz latino-americano Apoiado por mais de cinquenta mil manos Efeito colateral que o seu sistema fez
( Trecho de “Capítulo 4, Versículo 3”, de Mano Brown que integra “Sobrevivendo no Inferno”)