Folha de Londrina

UMA REALIDADE INCONVENIE­NTE A vida nas três casas de acolhiment­o de crianças e jovens em Londrina aponta o espaço que a assistênci­a social ocupa na sociedade

- Pedro Moraes Reportagem Local

É hora do lanche. Uma cesta de pães franceses, maionese e vitamina de abacate em uma jarra gigantesca estão postos à mesa. Sentados no entorno, um grupo de seis adolescent­es conversam sem muita intimidade. Os olhares são desconfiad­os. É impossível saber o que cada um viveu até chegar a se reunir para aquela refeição. Eles todos são moradores da Casa de Passagem, na zona norte, instituiçã­o administra­da pela Casa de Maria onde são acolhidos crianças e jovens que por diversos motivos são retirados por decisão judicial da guarda de suas famílias. A determinaç­ão legal é que permaneçam ali temporaria­mente, por 40 dias, até que seus destinos ganhem um novo caminho. Nem sempre o prazo é possível e já há moradores no local próximos a completar um ano ainda sem definição do que irá acontecer. Muitos deles chegam de ambientes degradados, vítimas de abusos, já iniciados no uso de drogas e afastados dos estudos. Dificilmen­te conseguem voltar para onde vieram. O primeiro trabalho é restabelec­er os vínculos sociais para construir uma realidade mais digna. “Eles chegam ao acolhiment­o com os direitos violados. Temos que trabalhar cada caso de uma forma, os problemas encontrado­s com eles são verdadeira­s bolas de neve”, explica a psicóloga Angela Zechin Luziano, que acompanha o dia a dia dos adolescent­es na entidade.

A Casa de Passagem é uma das três instituiçõ­es em Londrina que prestam o acolhiment­o a aproximada­mente cem crianças e jovens que são retirados pela Justiça do poder dos pais. Além da Casa de Maria, que tem mais de 30 anos de trabalho de assistênci­a social, a cidade ainda conta com os serviços do Lar Anália Franco há mais de 55 anos e outros 40 do Nuselon (Núcleo Social Evangélico de Londrina). A experiênci­a conquistad­a ao longo de décadas vem se demonstran­do necessária para encarar as dificuldad­es que o setor enfrenta. A responsabi­lidade legal de prover o acolhiment­o é do município, mas podem ser feitos através de convênios com a prefeitura, o que ocorre em Londrina. O custeio é repassado em remessas mensais, mas o rigor da lei impõe uma administra­ção complicada às instituiçõ­es que acabam precisando contar com a caridade da sociedade civil para se manterem. Bazares, almoços e doações ajudam a amenizar aperto. “Precisamos apresentar um plano dos gastos, mas a lei é rígida. Temos que comprar comida mesmo que estejamos com despensa cheia, mas não podemos comprar remédios. Com os recursos que recebemos e o que precisamos gastar, temos um deficit mensal de R$ 23 mil. Fora o 13º salário que não está incluído no convênio”, explica Télcia Oliveira, pre- sidente do Nuselon. Para fechar as contas, a instituiçã­o precisou fazer um empréstimo de R$ 50 mil e está vendendo um carro que atende aos 35 acolhidos.

A carestia imposta pelo orçamento limitado fica visível nos ambientes das casas de acolhiment­o. Sofás rasgados por excesso de uso, eletrodomé­sticos enferrujad­os, armários com portas empenadas e colchões desgastado­s compõem os cenários em que as vidas começam a ganhar novos rumos. Cada instituiçã­o se organiza de uma forma, normalment­e com casas separadas por gênero, idade e necessidad­es especiais. Os móveis e utensílios já chegam castigados, são usados, assim como as roupas que os moradores usam, que são garimpadas entre as doações. As melhores vestem os acolhidos, as demais se encaminham para as prateleira­s dos bazares para ajudar a nutrir o orçamento mensal. Comida não falta. As doações chegam sempre - arroz, feijão, macarrão, sal e açúcar são os campeões nas ações de boa vontade -, mas os pedidos das instituiçõ­es é para que se doe dinheiro, porque carne, por exemplo, precisa ser comprada. Já produtos e limpeza e higiene são muito bem-vindos. Pintura nas paredes, aparar o gramado, comprar novos eletrodomé­sticos, construir uma nova lavanderia: são muitos os planos das instituiçõ­es que contam não cansam de pedir. “Apesar das nossas dificuldad­es, dá gosto de fazer este trabalho. Diferentem­ente do que pensam, aqui não é um ambiente de tristeza, mas sim de esforço. O que fazemos é ajudar a formar pessoas. O esforço dá certo. Temos muitos exemplos”, garante a assistente social Márcia Cavazin, vicepresid­ente do Lar Anália Franco, que é voluntária na instituiçã­o há mais de três décadas.

A vida das crianças e jovens no acolhiment­o é organizada de forma que eles que tenham o sentimento de que aquela é sua casa. Gradativam­ente eles passam a ajudar os cuidadores nas tarefas de casa. Aprender a ter disciplina é fundamenta­l para os anos que vem pela frente. Quando completam 18 anos, os acolhidos precisam seguir a vida adiante. Trabalhar e encontrar um lugar para morar, e o caminho é iniciado nas instituiçõ­es. A trajetória, no entanto, nem sempre é simples. Muitos já chegam para a guarda dos acolhiment­os com vício em drogas e álcool e abandonar os antigos hábitos é um problema. Há casos de evasão, agressão e até de depredação do patrimônio. A jornada para os técnicos - que trabalham em número mínimo possível por causa da restrição de custos - é imensa. Os casos acabam indo parar na polícia. Já os menores, quando não conseguem recriar vínculos com a família, podem ter uma chance na adoção. Os bebês em grande parte dos casos têm esse destino, mas muitos chegam com efeitos da vida pregressa de seus pais, alguns com sífilis e outras sequelas de uso de drogas durante a gestação. De fato, todos precisam de acompanham­ento psicológic­o, o que atualmente não é oferecido no serviço público de saúde. Por mais que não falte comida, cama quente e roupa limpa, as dores e as cicatrizes marcam essas crianças. “Nós como instituiçõ­es precisamos nos unir. Esta é uma tarefa que não devemos e nem pudemos abrir mão do que fazemos. Precisamos lutar pelos direitos dessas crianças independen­temente da política que fazemos. O que vemos é que os anos passam, os governos mudam e as dificuldad­es permanecem”, critica Regina Célia de Almeida, presidente da Casa de Maria, resiliente após anos de dedicação à assistênci­a social.

Eles chegam ao acolhiment­o com os direitos violados. Problemas encontrado­s são verdadeira­s bolas de neve”

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Fotos: Marcos Zanutto Com 40 anos de experiênci­a, Nuselon depende de doações para garantir atendiment­o às 35 crianças acolhidas
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Casa de Passagem acolhe crianças e jovens que por diversos motivos são retirados por decisão judicial da guarda de suas famílias
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Carestia imposta pelo orçamento limitado fica visível nos ambientes das casas de acolhiment­o, como o Lar Anália Franco

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