UMA REALIDADE INCONVENIENTE A vida nas três casas de acolhimento de crianças e jovens em Londrina aponta o espaço que a assistência social ocupa na sociedade
É hora do lanche. Uma cesta de pães franceses, maionese e vitamina de abacate em uma jarra gigantesca estão postos à mesa. Sentados no entorno, um grupo de seis adolescentes conversam sem muita intimidade. Os olhares são desconfiados. É impossível saber o que cada um viveu até chegar a se reunir para aquela refeição. Eles todos são moradores da Casa de Passagem, na zona norte, instituição administrada pela Casa de Maria onde são acolhidos crianças e jovens que por diversos motivos são retirados por decisão judicial da guarda de suas famílias. A determinação legal é que permaneçam ali temporariamente, por 40 dias, até que seus destinos ganhem um novo caminho. Nem sempre o prazo é possível e já há moradores no local próximos a completar um ano ainda sem definição do que irá acontecer. Muitos deles chegam de ambientes degradados, vítimas de abusos, já iniciados no uso de drogas e afastados dos estudos. Dificilmente conseguem voltar para onde vieram. O primeiro trabalho é restabelecer os vínculos sociais para construir uma realidade mais digna. “Eles chegam ao acolhimento com os direitos violados. Temos que trabalhar cada caso de uma forma, os problemas encontrados com eles são verdadeiras bolas de neve”, explica a psicóloga Angela Zechin Luziano, que acompanha o dia a dia dos adolescentes na entidade.
A Casa de Passagem é uma das três instituições em Londrina que prestam o acolhimento a aproximadamente cem crianças e jovens que são retirados pela Justiça do poder dos pais. Além da Casa de Maria, que tem mais de 30 anos de trabalho de assistência social, a cidade ainda conta com os serviços do Lar Anália Franco há mais de 55 anos e outros 40 do Nuselon (Núcleo Social Evangélico de Londrina). A experiência conquistada ao longo de décadas vem se demonstrando necessária para encarar as dificuldades que o setor enfrenta. A responsabilidade legal de prover o acolhimento é do município, mas podem ser feitos através de convênios com a prefeitura, o que ocorre em Londrina. O custeio é repassado em remessas mensais, mas o rigor da lei impõe uma administração complicada às instituições que acabam precisando contar com a caridade da sociedade civil para se manterem. Bazares, almoços e doações ajudam a amenizar aperto. “Precisamos apresentar um plano dos gastos, mas a lei é rígida. Temos que comprar comida mesmo que estejamos com despensa cheia, mas não podemos comprar remédios. Com os recursos que recebemos e o que precisamos gastar, temos um deficit mensal de R$ 23 mil. Fora o 13º salário que não está incluído no convênio”, explica Télcia Oliveira, pre- sidente do Nuselon. Para fechar as contas, a instituição precisou fazer um empréstimo de R$ 50 mil e está vendendo um carro que atende aos 35 acolhidos.
A carestia imposta pelo orçamento limitado fica visível nos ambientes das casas de acolhimento. Sofás rasgados por excesso de uso, eletrodomésticos enferrujados, armários com portas empenadas e colchões desgastados compõem os cenários em que as vidas começam a ganhar novos rumos. Cada instituição se organiza de uma forma, normalmente com casas separadas por gênero, idade e necessidades especiais. Os móveis e utensílios já chegam castigados, são usados, assim como as roupas que os moradores usam, que são garimpadas entre as doações. As melhores vestem os acolhidos, as demais se encaminham para as prateleiras dos bazares para ajudar a nutrir o orçamento mensal. Comida não falta. As doações chegam sempre - arroz, feijão, macarrão, sal e açúcar são os campeões nas ações de boa vontade -, mas os pedidos das instituições é para que se doe dinheiro, porque carne, por exemplo, precisa ser comprada. Já produtos e limpeza e higiene são muito bem-vindos. Pintura nas paredes, aparar o gramado, comprar novos eletrodomésticos, construir uma nova lavanderia: são muitos os planos das instituições que contam não cansam de pedir. “Apesar das nossas dificuldades, dá gosto de fazer este trabalho. Diferentemente do que pensam, aqui não é um ambiente de tristeza, mas sim de esforço. O que fazemos é ajudar a formar pessoas. O esforço dá certo. Temos muitos exemplos”, garante a assistente social Márcia Cavazin, vicepresidente do Lar Anália Franco, que é voluntária na instituição há mais de três décadas.
A vida das crianças e jovens no acolhimento é organizada de forma que eles que tenham o sentimento de que aquela é sua casa. Gradativamente eles passam a ajudar os cuidadores nas tarefas de casa. Aprender a ter disciplina é fundamental para os anos que vem pela frente. Quando completam 18 anos, os acolhidos precisam seguir a vida adiante. Trabalhar e encontrar um lugar para morar, e o caminho é iniciado nas instituições. A trajetória, no entanto, nem sempre é simples. Muitos já chegam para a guarda dos acolhimentos com vício em drogas e álcool e abandonar os antigos hábitos é um problema. Há casos de evasão, agressão e até de depredação do patrimônio. A jornada para os técnicos - que trabalham em número mínimo possível por causa da restrição de custos - é imensa. Os casos acabam indo parar na polícia. Já os menores, quando não conseguem recriar vínculos com a família, podem ter uma chance na adoção. Os bebês em grande parte dos casos têm esse destino, mas muitos chegam com efeitos da vida pregressa de seus pais, alguns com sífilis e outras sequelas de uso de drogas durante a gestação. De fato, todos precisam de acompanhamento psicológico, o que atualmente não é oferecido no serviço público de saúde. Por mais que não falte comida, cama quente e roupa limpa, as dores e as cicatrizes marcam essas crianças. “Nós como instituições precisamos nos unir. Esta é uma tarefa que não devemos e nem pudemos abrir mão do que fazemos. Precisamos lutar pelos direitos dessas crianças independentemente da política que fazemos. O que vemos é que os anos passam, os governos mudam e as dificuldades permanecem”, critica Regina Célia de Almeida, presidente da Casa de Maria, resiliente após anos de dedicação à assistência social.
Eles chegam ao acolhimento com os direitos violados. Problemas encontrados são verdadeiras bolas de neve”