Nem todos os caminhos levam a ‘Roma’
Como sempre na entrega dos Oscar, os prêmios da 91ª edição foram distribuídos sob a inspiração bíblica do velho Salomão. A balança se equilibrou e os principais nominados dividiram estatuetas. Somente “A Favorita”, com dez candidaturas, não honrou seu título: apenas Olivia Colman levou seu troféu de melhor atriz, remetendo Glenn “The Wife” Close de volta ao limbo que agora amarga pela sétima vez. A rapsódia boêmia de Fred Mercury levou quatro prêmios - os septuagenários remanescentes do Queen (e mais Adam Lambert) deram um belo e contagiante arranque à cerimônia que, entretanto, não teve fôlego e inspiração para manter o ritmo trepidante desta abertura.
O evento foi dominado pelo cronômetro, e o que se viu em cerca de três horas o tempo foi de fato encurtado, mas só ligeiramente... durante o longo entra-e-sai de dezenas de apresentadores foi uma burocrática sucessão de prêmios e discursos sonolentos. A eliminação do mestre de cerimonias não surtiu o efeito desejado: é de fato preciso alguém de muito talento, carisma e empatia para segurar uma audiência doméstica e planetária que vem decrescendo há anos.
Ficou evidente a vontade da Academia de que todos voltassem felizes para casa, incluindo históricos dissidentes não premiados, como Spike Lee: agraciado com o Oscar de melhor ro- teiro adaptado para “Infiltrado na Klan”, Lee protagonizou “o” momento afroamericano da noite em seu discurso. Apresentado por um exultante Samuel L. Jackson, que deixou de lado o script, o diretor de “Faça a Coisa Certa” (1989) incendiou o ambiente quando lembrou seus ancestrais escravizados “que fizeram este país” e os sacrifícios de sua família, para concluir com uma referencia direta à conjuntura: “As eleições presidenciais estão logo aí. Vamos nos mover, vamos todos estar do lado certo da História. Entre o amor e o ódio, vamos fazer a coisa certa”. Mais tarde, quando se anunciou o Oscar de melhor filme para “Green Book”, as câmeras não mostraram, mas um Spike Lee visivelmente contrariado se levantou e foi para o fundo do teatro conversar com o diretor Jordan Peele (“Corra !”).
A insatisfação não é só dele. Uma parcela mais à esquerda da comunidade afro-americana não concorda com o ponto de vista “amável” e politicamente de “consenso” do filme vencedor - e também não vê méritos maiores para o “estetizado” filme-memória de Alfonso Cuarón ter alcançado a notoriedade que o conduziu a dez indicações, inclu- sive ao Oscar de melhor filme estrangeiro. A partir de agora, está se desenhando uma espécie de “infiltrados” no Oscar, ou seja, devemos presenciar nas próximas edições uma postura afroamericana ainda mais insinuante e exigente.
Os descolados da gala foram os esperados: “Bohemian Rapsody” e “Nasce Uma Estrela”. Embora a carta estivesse marcada com antecedência, havia uma esperança de que o melhor ator seria Willem Dafoe, por sua sobrenatural recriação de Van Gogh; mas a ânsia pela aceitação imediata direcionou a votação acadêmica mirando a aprovação mais fácil . Quem viu e viveu os tempos de Fred Mercury sabe que não é aquilo macaqueado por Rami Malek, é alguma coisa muito além da ridícula prótese e do olhar mortiço de uma múmia egípcia qualquer. Quanto à Lady Gaga, não há reparos, mesmo não se tratando de obra- prima. A excelência mesmo ficou por conta da performance da Filarmonica de Los Angeles regida por Gustavo Dudamel , na tradicional seção “In Memorian”. Ao final, entre alguns poucos bons momentos, a cerimônia ficou devendo muito aos teimosos e fieis cinéfilos da madrugada. Agora é aguardar 2020.