A sabedoria do velho Clint
Mula’, em cartaz em Londrina, é mais um dos preciosos testamentos cinematográficos de um ator e diretor icônico
Oano cinematográfico começou em Londrina da melhor maneira, e não me refiro especificamente à temporada de premiações nos Estados Unidos (Globos, Oscar) e Europa (Goya, Bafta), com óbvio reflexo nos lançamentos na cidade, mas ao regresso ao circuito, em grande forma, de um dos últimos diretores hollywoodianos a quem se pode chamar de clássico. Como em “Gran Torino” (onde há uma década brilhava também diante e atrás das câmeras), o criador de “Os Imperdoáveis”, “Menina de Ouro”, “Bird”, “Rio Místico” e tantos outros grandes momentos, entrega este “A Mula”, filme reflexivo e espécie de testamento social, político e sentimental construído com aquele pulso inoxidável de um dos grandes realizadores de todos os tempos. O filme entra nesta quinta-feira (28) em terceira semana na cidade.
Ao longo de várias décadas, a estrela de Clint Eastwood, incluído naquela geração dourada dos anos 1970, sempre deu mostras de sua capacidade de mudar a história do cinema. Mas fez mais. Foi além de seus contemporâneos que ficaram pelo caminho: evoluiu e mostrou que coerência seria sua poderosa marca registrada e fator de seu prestígio permanente. E mostrou isso fazendo mais ou menos o mesmo personagem em dezenas de filme, com algumas exceções, é verdade.
Em realizações dirigidas por ele, ou até em outras dirigidas por terceiros que o tiveram apenas como ator , o Eastwood personagem apresenta variações de um tipo clássico: o homem duro, forte e solitário que prefere resolver os problemas por conta própria e que desconfia de praticamente todo mundo. Este “personagem” foi se modificando e alterando ao longo dos anos. A partir de “Os Imperdoáveis” , digamos que foi sendo domesticado. Ou melhor: compreendeu que suas virtudes aparentes escondiam muitos defeitos. E esse papel, a certa altura, o tornou mais perigoso do que agradável, mais anti - do que heroico.
Muito antes que “masculinidade tóxica” viralizasse e se tornasse a expressão do ano passado, segundo o dicionário Oxford, criando raízes na consciência pública, Clint Eastwood, um dos ícones máximos desse tipo de comportamento, tratou de repensar sua própria lógica, e desde então não tem feito outra coisa senão buscar uma maneira de desconstruir e reconstruir esse personagem. E como é uma luta insólita e desconfortável, já que é sempre tentado por esse papel, seus filmes têm a tendência a ter uma tensão interna, já que não são politicamente corretos.
“A Mula”, como “Gran Torino” e sua série de filmes crepusculares (entre eles “Um Mundo Perfeito”, do qual “A Mula” se nutre bastante), levanta novamente o conflito do “personagem de Eastwood”, que questiona a ideia do individualismo extremo que marcou sua carreira. Os “outros” o incomodam e não há nada que ele prefira mais do que dirigir seu carro sozinho e ouvir (e cantar) músicas, coisas de que gosta e que faz muito no filme. Mas “aqueles” outros, especialmente sua família, também o afligem muito. E no final dos seus anos, ele vive atormentado por não ter feito o que tinha que fazer muito antes, absorto em seu próprio ego. Há tempo para uma segunda chance ou é tarde demais ? Esta dúvida - e não entregar a cocaína no lugar certo e na hora certa - é o principal conflito do filme.
O “personagem” de Eastwood em “A Mula” é duplo, já que o diretor compõe um homem que, na trama narrada, vem a ser outro. Earl Stone (baseado no personagem real Lee Sharp, que nos anos 1980, aos 90 anos, transportou cocaína para o cartel de Sinaloa, fundado por El Chapo) é Earl Stone, veterano da Segunda Guerra que vive tranquilo como horticultor premiado. Falido e pressionado por dívidas, ele aceita levar cargas de droga pesada através dos EUA para o México. Agora ele é o outro Earl, o “Tata”, como é chamado pelos narcos.
Ele se dá bem como este personagem, seja diante dos traficantes, seja diante da polícia ou das pessoas que encontra “on the road”. Com tudo enfim que esteja da porta de sua casa para fora. Ele tem cerca de 90 anos e há muito tempo mal se relaciona com a família. Tem ex-esposa e uma filha - que o papel desta filha seja interpretado pela própria filha de Eastwood, Alison, torna o assunto mais que pessoal. Terapêutico mesmo.
Ao longo de quase duas horas, “A Mula” dedica bom tempo às viagens de Earl, às suas histórias curiosas e aos encontros que vai pontuando aqui e ali. E que mostram que ele é um velho bem mais malandro e treinado do que parece. Com os traficantes manipula mais do que é manipulado; sem usar armas ou violência os leva pelos caminhos que quer. Mas o que ele não consegue resolver, e o que mais dói, é o relacionamento com a família (e amigos e instituições como a dos veteranos de guerra) : seus entes mais próximos não querem nem saber e agora o mantém distante. O dinheiro, já cantavam os Beatles, não pode comprar amor.
Clint Eastwood hesitou entre estar em seu cinema como um pai ausente ou um professor impotente incapaz de proteger novas gerações. Seu pessimismo pairou sobre muitas ideias. De falhas absolutas a reconciliações, pagando por elas preços altos. Mas também teve filmes luminosos e otimistas. Como acontece quase desde o início de sua carreira, ele volta a se colocar no espaço do cinema crepuscular, nas despedidas, nos últimos gestos, nas ausências e, é claro, na velhice, no literal crepúsculo da existência. Esta a sabedoria do velho Clint. Sem ser pomposo e nem severo e nem grandiloquente, e sem apostar em modismos de epifania, “A Mula” é mais um de seus preciosos testamentos cinematográficos. E uma espécie de homenagem, ou pedido de perdão, aos que deixou de lado para dedicar-se a cultivar sua própria carreira. Para que tivéssemos o Clint ícone por mais de 50 anos, com certeza muitas pessoas próximas a ele tiveram que deixálo ir. Embora tardia, esta foi sua melhor desculpa.