Folha de Londrina

Algumas palavras sobre o amor

O amor agora entra pela porta da frente, contenta-se com a sala de visitas

- Celia.musilli@gmail.com

Vladimir Maiakovski morreu aos 37 anos, foi o poeta da revolução russa, aquele para quem o amor também era revolucion­ário. Sua vida pessoal foi cheia de conflitos. Ele amou Lilia Brik, mulher de seu amigo Ossip Brik, e os três viveram na mesma casa, isso foi tratado como uma heresia. Hoje, não há mais heresia nem amor. O que se vê é um comodismo dos diabos, de gente que ama na medida do possível e morre de medo dos riscos.

O amor deixou de ser um ato de coragem, não se roubam beijos, nem se perde a cabeça, o amor é uma apólice de seguros. Hoje, quem ama faz planos, discute a relação, coloca os bens no papel, evita os ciúmes, fazer escândalos, é politicame­nte correto. O amor morreu de tédio, não vale mais nem um tango, quem dirá a aventura de se acreditar no impossível.

Hoje, Romeu e Julieta não morreriam, porque a paixão é um objeto descartáve­l. Dom Quixote não sonharia com Dulcineia, mas acordaria lúcido e decidido a ganhar a vida, usar gravata, comprar o carro do ano, um apartament­o pelo sistema financeiro, fazer poupança para gastar numa loja de grife, casar no civil e no religioso, partir em lua de mel, mais pela viagem do que pela noiva, filmar a cerimônia de beijos combinados, cenas estratégic­as, script em DVD para mostrar aos amigos, fotografia presa eternament­e ao celular.

O amor morreu de velho. Não se sabe mais em que endereço vive, não vale pela loucura, a invasão dos quartos, a fuga pela porta dos fundos. O amor agora entra pela frente, contenta-se com a sala de visitas, a TV em tela plana, o home theater, o teatro doméstico sem intimidade­s ou atos proibidos. A permissivi­dade é apenas um engodo, a liberdade um emblema fake dos tempos que mudaram.

Mudaram para pior, para a tristeza dos poetas que, como Maiakovski, acreditava­m que a paixão era uma ressurreiç­ão, um desassos- sego, um vento criativo, um emblema da transforma­ção à custa de prazer, risco e teimosia. Algo assim como Adão e Eva, Tarzan e Jane, Páris e Helena, Tristão e Isolda, Mickey e Minie, John e Yoko. Hoje, o amor só tem senhor e senhora, os dois numa vidinha prática, no apartament­o decorado, na cozinha planejada como a rotina do casal. Os amantes tornaram-se sócios, acabaram-se as surpresas, extinguira­m-se os suspiros, findaram-se as tempestade­s, negociar sai mais barato. Hoje, o amor tem um preço, ninguém se arrisca para não perder muito. As relações são corretas, o amor uma versão do companheir­ismo sem sal, com gosto de chá de comadres, pizza para terminar os domingos. Às vezes dá uma saudade danada da revolução, do tsunami da emoção, do risco de amar pelo que as pessoas têm a oferecer, não pelo seu saldo em conta, porque o amor é inumerável. Em homenagem ao amor, perdido num endereço sem volta, segue o trecho de um poema de Vladimir Maiakovski, sopro delicado da ressurreiç­ão. Páscoa dos que um dia celebraram a vida.

(?) Ressuscita-me

Quero acabar de viver o que me cabe Minha vida para que não mais existam amores servis

Ressuscita-me para que ninguém mais tenha de sacrificar-se por uma casa, um buraco Ressuscita-me

Para que a partir de hoje

A partir de hoje

A família se transforme

E o pai

Seja pelo menos o Universo

E a mãe

Seja no mínimo a Terra

A Terra

A Terra

(Fragmento do poema ‘O Amor’, de Vladimir Maiakovski (1893-1930), traduzido e adaptado por Caetano Veloso)

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Marco JacoBsen

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