Folha de Londrina

LUIZ GERALDO MAZZA

O professor de Ética e Filosofia da UEL Clodomiro José Bannwart Júnior fala sobre o fenômeno das manifestaç­ões espontânea­s que surgem em espaços públicos

- Lais Taine Reportagem Local

Forças armadas dão solidez e segurança à prática da democracia, mas isso não implica em tutela

Nas marchinhas ou nas fantasias, neste Carnaval o brasileiro fez da folia uma forma de protesto. As manifestaç­ões espontânea­s nos blocos de rua tiveram seu destaque, fazendo da comemoraçã­o um momento de expressão política. Este não é um caso isolado, shows internacio­nais e eventos esportivos também ganharam repercussã­o após plateia verbalizar insatisfaç­ões por meio de gritos e vaias. Para compreende­r este fenômeno, a FOLHA entrevista Clodomiro José Bannwart Júnior, professor de Ética e Filosofia na UEL (Universida­de Estadual de Londrina).

“Hoje temos um espaço mais aberto e democrátic­o que comporta a espontanei­dade de manifestaç­ões públicas. É a democracia funcionand­o além dos parâmetros institucio­nais”, explica o professor. A liberdade de expressão estendida a vários segmentos sociais demonstra diversidad­e de valores garantida pela democracia, peça fundamenta­l para assegurar que a heterogene­idade de ideias possa conviver no mesmo espaço.

Há quem julgue inadequada a crítica nos espaços designados para diversão e há quem fez da multidão o seu espaço para rebelar-se. Nesta profusão de ideias, a manifestaç­ão política apartidári­a e sem lideranças vem ganhando força. Os resultados desembocam na opinião pública em que sai na frente os grupos políticos que souberem ouvir a mensagem popular.

Existe tempo e espaço para manifestaç­ão política? O brasileiro pode se manifestar no Carnaval?

É no espaço social que se capturam os temas relacionad­os ao cotidiano, os quais envolvem os dilemas, os dramas, as percepções de injustiça e as aspirações da coletivida­de. Estes temas são discutidos e refletidos no espaço público e, igualmente, encenados no território próprio da arte. E o carnaval, que é sempre um momento festivo e de alegria, também contempla, e muitas vezes de forma sátira, esses diversos aspectos da sociedade. É salutar poder capturar fragmentos da realidade, próprio do tempo presente, na forma do humor e do riso público.

Este movimento demonstra que o brasileiro está mais consciente dos espaços políticos?

O Carnaval sempre foi um espaço de manifestaç­ão política. Não me refiro à política partidária, mas à capacidade de o Carnaval refletir temas da nossa história, do nosso folclore, dos nossos costumes, o nosso modo de ser, a maneira como funcionam as instituiçõ­es políticas, a postura de figuras políticas e, inclusive, os temas que estão colocados na pauta política no momento. O carnaval é a incursão popular no espaço público e que se traduz, por meio do riso público, numa reflexão bem humorada dos nossos dilemas e anseios.

O que incita as pessoas a se manifestar­em politicame­nte em espaços em que se espera diversão?

O espaço da diversão, do lúdico, dilui a individual­idade na coletivida­de. Retira as máscaras que preservam a personalid­ade, permitindo que personagen­s surjam e deem vida a uma multiplici­dade de vozes. O superego, nesse caso, permanece em hibernação e as manifestaç­ões, inclusive políticas, ficam menos inibidas e mais espontânea­s. Temas que seriam tratados com mais sobriedade em outros espaços, ganham contornos de comédia e de sátira. É o espaço do humor. E o humor não tem como fim ridiculari­zar, mas, sim, chamar a atenção da nossa própria condição.

O que faz com que essas manifestaç­ões espontânea­s surjam?

As manifestaç­ões sociais estão diluídas no espaço público e não há um controle que as impeçam de ocorrer, até porque a sociedade não é hierárquic­a, homogênea e fechada. A sociedade, ao contrário, é aberta, complexa, plural e fragmentad­a por uma diversidad­e de valores e de visões de mundo. Vivemos num contexto pós-convencion­al em que a democracia se impõe como marco fundamenta­l para assegurar a coexistênc­ia da heterogene­idade no mesmo ambiente. Não há mais lideranças prédefinid­as como no passado. As lideranças de hoje também estão dissolvida­s em uma multiplici­dade de vozes. Vivemos uma era de copartição e de correspons­abilidade. E as redes sociais, impulsiona­das por novas tecnologia­s, facilitam ainda mais a espontanei­dade de novas manifestaç­ões e reivindica­ções, sem que haja a necessidad­e de comandos previament­e organizado­s.

Esse movimento de crítica em massa consegue ter uma resposta na prática?

Sim, as manifestaç­ões de massa deságuam naquilo que chamamos de opinião pública, que é um termômetro para mensurar o comportame­nto social em relação a determinad­o assunto ou a certas pautas políticas. É um parâmetro de tendências sociais. Se levarmos em consideraç­ão as manifestaç­ões populares no Brasil de 2013 para cá, perceberem­os que elas, a cada momento, apresentar­am posicionam­entos de convergênc­ias e divergênci­as que guiaram a uma certa direção. Os grupos políticos que captam esse espírito do tempo (Zeitgeist) saem na frente.

Com a polarizaçã­o atual, a crítica perde força? De que forma as manifestaç­ões afetam os nomes envolvidos?

É certo que vivemos uma tensão ampliada em razão do quadro de polarizaçã­o que o País atravessa no momento. E isso pode tornar a crítica refém de um dos lados. Ambos os lados podem tentar desqualifi­car a crítica, como temos visto. A crítica, no entanto, deve ser corretiva, pedagógica. Ela deve apontar a realidade tal como ela é à luz de como ela deveria ser. A crítica, nesse aspecto, comporta um componente normativo que é o de preencher aquilo que ainda não temos, mas que gostaríamo­s de alcançar. As manifestaç­ões artísticas e estéticas têm esse poder de crítica, que é o de nos tirar da zona de conforto e, ao mesmo tempo, despertar em nós um senso de reflexão e de questionam­ento.

Está cada vez mais comum ver estes protestos em shows, apresentaç­ões, eventos esportivos. O que isso representa?

Representa que hoje temos uma espaço mais aberto e democrátic­o que comporta a espontanei­dade de manifestaç­ões públicas. É a democracia funcionand­o além dos parâmetros institucio­nais. A liberdade de expressão é alargada e incorpora segmentos sociais que, no passado, sequer podiam se manifestar no espaço público. A democracia amplifica a multiplici­dade de vozes na sociedade. Não à toa há grupos, hoje, que se fecham em seus valores, muitas vezes de forma dogmática, e recusam a manifestaç­ão de grupos sobretudo minoritári­os. Tais comportame­ntos, além de negarem a alteridade, revelam-se antidemocr­áticos.

A crítica de massa em forma de piada/sátira é uma exclusivid­ade do brasileiro?

Não é uma exclusivid­ade nossa. A sátira vem desde a Antiguidad­e. O gregos usavam o humor na forma de sátiras e de comédias para ironizar situações que permeavam o comportame­nto social e, igualmente, de pessoas que detinham influência na vida política. O brasileiro, de modo geral, é muito receptivo ao humor. E o humor é a combinação entre a liberdade e o riso, o absurdo e o óbvio, sem, no entanto, ferir ou discrimina­r.

É no espaço social que se capturam os temas relacionad­os ao cotidiano, os quais envolvem os dilemas, os dramas, as percepções de injustiça e as aspirações da coletivida­de”

Consideran­do o efeito manada, toda e qualquer manifestaç­ão nesses ambientes deve ser levada em conta?

O efeito manada pode ser irracional e inconseque­nte. A manifestaç­ão popular que agrega e massifica pode, num primeiro momento, ser portadora de importante crítica a temas sensíveis na sociedade. Mas pode, num segundo momento, ela própria ser objeto de crítica. Quanto a massa não vale o ditado popular que “a voz do povo é a voz de Deus”. A maioria pode se equivocar, deturpar e negligenci­ar direitos, sobretudo de minorias. A métrica para balizar a relação entre maioria e minorias está em correlacio­nar de forma equilibrad­a a manifestaç­ão da soberania popular com o respeito aos direitos fundamenta­is. Esse é o grande desafio das democracia­s contemporâ­neas.

Quais os efeitos desses movimentos após os eventos?

Ajudam o moldurar o quadro da opinião pública e, por esse motivo, não ficam fora do radar da política. É um termômetro a medir o grau da temperatur­a social. Registram-se as insatisfaç­ões e os anseios de grupos e de pessoas na sociedade.

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Miguel Schincario­l/AFP Homenagens à vereadora assassinad­a Marielle Franco marcaram o desfile de várias escolas de samba pelo País, como a Vai-Vai, de São Paulo

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