Lei aumenta proteção de criança vítima de violência
Pesquisadora Lúcia Williams defende que o relato espontâneo é a prova material ideal para Judiciário e deve acontecer uma única vez
Em abril de 2018 entrou em vigor no Brasil a Lei nº 13.431/17, chamada “Lei de Escuta Especializada e Depoimento Especial”. A legislação altera o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) garantindo o direito de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, de serem ouvidas adequadamente, como cidadãos de direito.
Hoje, os crimes de violência sexual são um dos mais expressivos. Entre 2011 e 2017, o Ministério da Saúde registrou 184.524 casos de violência sexual, sendo 58.037 (31,5%) contra crianças e 83.068 (45,0%) contra adolescentes.
Na prática, essas vítimas são levadas aos órgãos de proteção e acabam repetindo por até cinco vezes o relato do crime. E a cada fala, elas “revivem” o sofrimento e podem ter algum tipo de influência na narrativa por não contarem com um profissional capacitado para ouvi-las em busca de um relato fiel e espontâneo.
A maneira mais apropriada para se fazer isso vem sendo estudada no Brasil por pesquisadores de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. Uma delas é a professora e doutora Lúcia Cavalcanti de Albuquerque Williams, da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).
Há duas décadas, ela se dedica aos estudos da violência escolar, contra mulheres e infantojuvenil, através do Laprev (Laboratório de Análise e Prevenção da Violência) no Departamento de Psicologia da universidade.
Tamanha experiência levou Williams a estudar um dos protocolos desenvolvidos nos Estados Unidos, o NICHD (National Institute of Child Health and Human Development), utilizado em vários países e em processo de validação no Brasil.
Em resumo, segundo a especialista, o protocolo aponta caminhos para a formulação de perguntas, visando o protagonismo da faladacriança.Paraconcretizar a importância desse processo, ela lembra de um caso em uma escola de Los Angeles, nos anos 80, quando um professor foi acusado de abuso sexual.
“Entrevistaram mais de 200 crianças e não se chegava a um consenso. Eles perceberam que estavam fazendo tudo errado na coleta de dados. Os profissionais faziam perguntas inadequadas e contaminaram o relato das crianças, induzindo-as a dizer coisas que não haviam acontecido”, conta.
Esse episódio despertou a necessidade de se pensar em estratégias, dando bagagem para o desenvolvimento dos primeiros protocolos para escuta especializada. Em Londrina, o tema foi tratado recentemente em um curso que reuniu servidores das secretarias municipais de Assistência Social, Educação, Saúde e Políticas para as Mulheres,alémdeconselheiros tutelares e Ministério Público. Williams participou do evento e conversou com a FOLHA.
Qual é o motivo desse encontro em Londrina?
Estamos tratando do direito das crianças e adolescentes de serem ouvidos em todo o processo judicial que lhes afetem. O Brasil é signatário da Convenção dos Direitos da Criança, que surgiu antes do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e traz a criança como um cidadão de direito tanto quanto eu e você. Se alguém pratica um crime contra você, é seu direito ir atrás, acompanhar o processo, falar sobre e ser ouvida. Há novas leis, novas demandas e nosso objetivo final é apontar como fazer a escuta da criança que traz uma revelação de violência, especialmente de abusosexual,paraprofissionais de diversas áreas.
Isso não acontece na prática?
Existem muitos casos no estado onde trabalho (São Paulo), que o processo foi feito com base em relatos de profissionais sem nunca aparecer o relato da criança. Então, essa lei dá voz para a criança. Já estamos progredindo, porque nos países que estão fazendo isso há mais tempo, eles estão vendo que as notificações de abuso sexual têm diminuído. Isso é porque há punição e tratamento para as pessoas que transgridem, além de um trabalho de prevenção.
Como é a escuta dessas vítimas atualmente no Brasil?
A gente vê hoje que a criança tem que dar pelo menos cinco entrevistas. Em países como Canadá, Estados Unidos e Israel, por exemplo, a criança faz somente um relato, que é filmado e acompanhado por advogados que ficam atrás de um espelho. No Brasil, estamos nos organizando para chegar lá, pois ter uma escuta especializada logo após a violência é fundamental para a proteção da criança e para a clareza de quem seria o possível ofensor. E quando o processo chegar no Judiciário daqui a alguns anos, mesmo que a criança tenha esquecido detalhes importantes, teremos essa escuta inicial. O que vitimiza a criança é o silêncio, ou seja, ela nunca ser escutada. Isso é extremamente traumático, assim como ser ouvida repetida vezes e por profissionais despreparados, que vão fazer comentários inapropriados. Ainda não é, mas no futuro esse relato deve acontecer uma vez só.
O relato único e espontâneo é suficiente para o sistema Judiciário?
A violência sexual contra criança e adolescência é um tema que tem uma dinâmica muito peculiar, muita controvérsia, mesmo para os profissionais. E por ser um tema particular, privado e ter poucas provas, ele traz muitos desafios para o Judiciário. Mesmo nos casos mais graves de abuso contra crianças e adolescentes que podem ter ocorrido por muito tempo e envolvido danos graves, há poucas evidências físicas. Então, é difícil ter a materialidade. E para os especialistas, a materialidade ideal é a fala de criança, mas ela tem que ser colhida sem influência, mostrando empatia. Para isso, existem protocolos desenvolvidos por pesquisadores na área de psicologia para mostrar como fazer esse trabalho. O profissional deve escutar muito e de preferência, falar pouco. Essa escuta deve durar cerca de uma hora e quando é bem feito, em 90% dos casos a criança colabora e há um relato muito rico, fidedigno.
Como fazer valer essa lei?
A Lei de Escuta surgiu porque há vários anos, profissionais do Brasil têm visitado países que têm tratado da questão da prevenção do abuso sexual com mais eficiência que nós, como o Canadá, os Estados Unidos, os países escandinavos, Israel. Depois dessa observação, os pesquisadores trouxeram protocolos e em função disso, a lei foi então alterada no final do ano passado. Para nossa realidade é uma coisa muito nova porque vai ter que envolver novos serviços e recursos, talvez rever a estrutura da rede e ser analisado por cada município. O disparador é a lei e nós começamos com uma sensibilização, como neste evento em Londrina.
Como deve ser essa escuta especializada?
Quanto mais jovem a criança, mais chance tem dela ser influenciada. Daí, o cuidado de você não colocar palavras na boca dessa criança, mas ensiná-la a fazer narrativas livres. Antes de perguntar, a gente ensina a criança a contar tudo, desde o começo, com assuntos neutros. Isso é muito diferente da nossa maneira de conversar e por isso é preciso treino e muitas entrevistas. Com adolescente é mais fácil, eles têm uma capacidade de verbalização e abstração muito maior.
Quais são as diretrizes para o depoimento especial?
O depoimento especial vai acontecer mais tarde, quando o caso chega no Judiciário. A criança vai ter a oitiva que não será na frente do suposto agressor como acontecia no passado, pois isso é extremamente constrangedor e ameaçador. Ela será ouvida porumprofissionalcapacitado, as perguntas são feitas em um fone de ouvido, em uma sala adequada e com um espelho unilateral.
Considerando a violência de forma geral, existe a percepção de que o mundo está cada vez mais violento. O quevocêavaliacomoestudiosa do tema?
Essa percepção é errônea porque no passado nós éramos muito mais violentos. Haviam muito mais mortes, assassinatos e as guerras eram muito mais letais. Isso não significa que o País não é violento. Ele é extremamente violento, só que sempre foi ao longo da história. Nós matamos nossas populações indígenas, escravizamos a população negra. O que acontece hoje é que a violência é escancarada pela mídia, como deveria ser. Então, ela adentra, nós ficamos sabendo dela. Em alguns indicadores de violência nós pioramos, como por exemplo, a questão da drogas, mas por outro lado, hoje a gente zela muito mais pela nossa criança do que no passado, a gente zela mais pela mulher, apesar do Brasil ter uma das taxas mais altas de feminicídio do mundo. No passado era pior porque não tínhamos nem estatística de violência contra mulher porque isso não era nem considerado um delito.
Como diminuir a violência?
A gente tem que fazer prevenção e isso a gente faz muito pouco. Essa prevenção não é feita armando mais o cidadão. Pelo contrário. Nós temos muita pesquisa mostrando que basta a visão de uma arma que já aumenta a agressividade das pessoas. Temos que fazer prevenção primária. Crianças e adolescentes livres de maus tratos, boas alternativas, boas escolas, bons profissionais de saúde para cuidar da população. Se temos boas escolas, você não entra tanto para o crime. Há uma pesquisa que mostra que quanto mais um indivíduo fica na escola, menos ele vai transgredir. Quando se analisa a violência urbana, quando se vai em uma cadeia, por exemplo, é altíssima a proporção de relatos de maus tratos, de muita violência em casa ou mesmo na comunidade. Isso nos empurra para uma trajetória criminosa. É sistêmico. É muito amplo. Nós também temos que ter outra maneira de lidar com nosso tráfico de drogas, que é um corruptor e leva as crianças desde cedo para o crime e finalmente, temos que ser um país livre da corrupção porque ela é um tipo de violência gravíssima que afeta indiretamente, milhões de pessoas.
Quanto mais jovem a criança, mais chance tem dela ser influenciada”