Folha de Londrina

CÉLIA MUSILLI

- Celia.musilli@gmail.com

Aqui a análise é sobre o culto às armas que recebem, no momento, uma chancela oficial

Dois jovens entram numa escola estadual no interior de SP e promovem um massacre. Um deles usa uma máscara de caveira - como se interpreta­sse a morte - eles portam um revólver, um artefato que lembra armas medievais como a “besta”, explosivos e um machadinho.

Antes de saírem de casa para a matança, um deles posta nas redes sociais uma série de fotos em que ostenta a violência, mas os preparativ­os começaram muito antes, conforme os rastros deixados nos computador­es. Além disso, sabese que o comportame­nto da dupla - que frequentav­a uma lan house no mesmo bairro - era conhecido por jogar gritando e xingando. Era como se estivessem frente a frente com um inimigo real e não com um personagem de games.

A mente desses jovens estavam tomadas por uma virtualida­de que extrapola limites entre o real e o fictício. Some-se a isso uma propaganda insistente pelo armamento da população, um viés político que eles admiravam e que considera a arma só como “defesa”, sem levar em conta os riscos de “ataque.”

Some-se a isso, o fato do grupo político que assumiu o País não considerar o armamento apenas como um instrument­o de defesa, mas de ostentação. Se não fosse ostentação, as poses com “arminhas” nas mãos em fotos nas redes sociais do presidente da República e seus filhos, posando como modelos de capas de revista com camisetas pretas e pinta de playboys - não teriam este aspecto de exibicioni­smo, que coloca a arma como um fetiche, mais que isso, um poder para quem as empunha, como uma espécie de Swaat brazuca. Aqui o que está em xeque não é a observação de que os massacres já acontecera­m antes no País, isso não justifica tudo. Aqui a análise é sobre o culto às armas que recebem, no momento, uma chancela oficial.

Trata-se, de certa forma, de um retorno neurótico à sentença bíblica do “olho por olho, dente por dente”, que o Novo Testamento substituiu pela visão do discernime­nto e do perdão para a qual o próprio Cristo deixou exemplos como o “dar a outra face”, estimuland­o uma sociedade pacífica.

Se toco nestes pontos é para amarrar as pontas da valorizaçã­o da violência e banalizaçã­o da vida que configuram a sociedade brasileira dentro de um game perigoso. O que salta aos olhos, no momento, são as performanc­es da violência e os “rituais de massacre”, feitos de poses na internet, culto às armas e um orgulho evidente de “poder matar”. As armas não servem senão para isso.

Na semana em que se descobre que o miliciano suspeito de assassinar Marielle Franco e seu motorista tinha um estoque de fuzis numa casa da Zona Norte do Rio,observa-se nas redes sociais a admiração de alguns pelas armas que seriam de um modelo parecido ao utilizado pela Marinha Americana, comprovand­o-se o fetiche por objetos que só servem à destruição. Coincident­emente, descobre-se, na mesma semana, que os matadores de Suzano eram fãs de jogos violentos como Garena Free Fire e Call of Duty que, de certa forma, adaptaram à realidade, deixando de gritar na frente dos games “eu te mato, eu te mato”, para assassinar­em pra valer.

Recusar-se a unir as pontas de uma cultura de violência que adquire um aspecto performáti­co, é negar a influência da permissivi­dade armamentis­ta numa sociedade que conta com uma parcela que quer resolver tudo a tiros. Ou reconhecem­os a força simbólica dos mitos da vida pública e dos matadores de videogames sobre as nossas existência­s - e sobretudo sobre a mente de pessoas vulnerávei­s - ou deixamos aberta a porteira dos abusos sem limites.

Como se não bastasse toda matança de brincadeir­inha observada na vida virtual, um jogo que promove o estupro - chamado Rape Day - foi lançado na maior plataforma de games do mundo e já foi retirado depois de receber críticas pela sua periculosi­dade. O criador do game chegou a afirmar que “quis fazer um jogo para psicopatas.” Isso dá a dimensão da doença social na qual estamos mergulhado­s num momento em que empunhar armas e divulgar violência é uma performanc­e que às vezes escapa do “teatro” das telinhas e das campanhas políticas para a vida real.

Que a morte de pessoas inocentes na escola pública de Suzano sirva de reflexão profunda para quem acha que “não tem nada demais” representa­r o poder de tirar vidas com uma “arminha” na mão. Arma não deve ser objeto de exibicioni­smo e ostentação porque o símbolo pode se projetar na realidade como bala.

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Marco Jacobsen

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