Folha de Londrina

A leitora que espera a crônica

- Fale com o colunista: avenidapar­ana@folhadelon­drina.com.br

Sei que, em algum lugar do mundo, alguém espera esta crônica. Deve ser apenas uma leitora que reserva cinco minutos de seu dia para saber o que um cronista decidiu escrever. Na maior parte das vezes, ela se decepciona, mas não desiste. Um dia, talvez, o cronista dirá aquelas palavras que ela está precisando ouvir, que despertari­am o segredo mais valioso das profundeza­s da alma, como a forma desperta o conteúdo, como o dia desperta a noite, como a partitura desperta a música. A leitora não desiste, e o cronista também não. Certa vez, um grande amigo do cronista ouviu, de um completo desconheci­do, a seguinte frase: — Minha mãe acabou de morrer.

Talvez a leitora queira saber o que o cronista tem a dizer sobre isso, sobre uma clara de manhã de junho em que abrimos a porta e um estranho nos diz, como se fossem as únicas palavras do idioma:

— Minha mãe acabou de morrer.

A leitora que espera a crônica não sabe quem é a mãe nem o filho, a leitora talvez nem saiba quem é o grande amigo do cronista. A leitora espera uma crônica que ela possa entender e reconhecer como a mãe reconhece um filho no caos do bombardeio. A leitora espera uma crônica que desperte o seu instinto materno, e assim o mundo teria menos uma criança órfã, mesmo que em forma de letras e espaços em branco na tela do computador.

A leitora que espera a crônica, desnecessá­rio dizer, espera o impossível. Se é desnecessá­rio dizer, então, por que dizer? Ora, porque a crônica gosta de dizer exatamente o desnecessá­rio, e aí mora a sua impossibil­idade. Impossibil­idade e inutilidad­e que ninguém tem paciência para ver – exceto a única leitora da crônica.

A leitora espera uma crônica que tenha algo para lhe dizer sobre a jornada de trabalho que começa; sobre o gerente que não conhece bulhufas do serviço; sobre o casal de mendigos que dorme na Rua La Paz; sobre o cavalo doente que está apanhando do dono; sobre o cachorro que tem saudade. A leitora espera uma crônica sobre a leitora que espera a crônica.

É para essa leitora que eu escrevo, embora não saiba seu nome, nem sua profissão, nem seu endereço. Embora talvez nunca venha a saber quem ela é. Embora, meu Deus, às vezes me atormente a ideia, bastante lógica, de que ela não existe.

Talvez a leitora espere que eu fale sobre a musiquinha que tocava aos domingos no Fantástico (“Olhe bem / Preste atenção...”). A chatice dos sapatos que engolem as meias é outro assunto que a leitora apreciaria ver na crônica. Espera que eu fale do Tio Patinhas, milhardári­o de Patópolis. Ou, ainda, que eu lembre as tardes de julho na Alameda Barão de Limeira, quando morávamos no primeiro andar, em cima da lavanderia.

Por isso, por isso tudo, a crônica existe. Existe para ser esperada, para decepciona­r, para voltar à carga. Na verdade, ninguém sabe por que a crônica existe, por que continua sendo escrita. Quem sabe, a leitora da crônica tenha desapareci­do para sempre, junto com a frase daquele homem desconheci­do:

— Minha mãe acabou de morrer.

 ?? IStock ??
IStock

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil