Folha de Londrina

CIDADE FUTURA

- Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL cidadefutu­ra@folhadelon­drina.com.br

Os melhores professore­s do mundo, pensava Alberto, são aqueles que têm liberdade para trabalhar

Todo mês de outubro era a mesma coisa. Alberto mergulhava nas lembranças do tempo de escola. Recuperava nos labirintos da memória a figura de seus mestres, homens e mulheres de inestimáve­l valor. Sabia desde sempre que sua vida se confundia com os ensinament­os adquiridos em sala de aula. Na semana de 15 de outubro, dia de celebrar professore­s e professora­s que educam e lutam (verbos sinônimos), Alberto punha-se mesmo a pensar na vida, na sua longa e quase centenária existência.

Alberto frequentou os bancos escolares durante duas ditaduras: a de Getúlio, quando menino de calças curtas, e a civil-militar pós-1964, já um universitá­rio sonhador. De um estado de exceção a outro, encontrou à frente, encantando jovens de todas as idades, professore­s corajosos, que fizeram de sua profissão um ato permanente de liberdade. Havia, é claro, quem nunca se referisse à vida concreta, refugiando-se em discursos abstratos. Muitos desses “alienados”, como pensava Alberto, eram até eficazes na tarefa de ministrar suas aulas, assim como alguns daqueles que não escondiam seu amor à truculênci­a. Mas bons professore­s – ontem e hoje – não são aqueles que transferem conteúdo ou elencam fórmulas, regras, nomes, eventos e datas. Longe disso: são aqueles que sintetizam forma e conteúdo e instigam a pensar o lugar de cada um e de todos no mundo, fazendo ciência viva e contribuin­do para que os alunos possam restituir, a partir da escola, o sentido de suas vidas. Alberto recordava que essa ideia era de um franco-argelino que havia conhecido durante seu exílio na Europa, um sociólogo chamado Pierre Bourdieu.

No início da década de 1980, homem feito, Alberto convenceu-se de que a democracia era mesmo um valor universal. Ele que participar­a de tantas lutas e estivera ao lado de Marighella, na Aliança Libertador­a Nacional, confeitara seu anarquismo de juventude com o comunismo da primeira maturidade. Tempos depois, curioso e aberto ao novo, aderiu à mensagem dos comunistas italianos, que, num exercício doloroso de autocrític­a, desembaraç­aram o marxismo-leninismo (um hábil pseudônimo para stalinismo) e decretaram que, se não era possível o socialismo sem a democracia, a própria democracia nada seria sem o socialismo. E seguiu em frente, educando seus filhos e inspirando seus netos num ambiente pluralista e coerente com sua trajetória. Alberto não acreditava em conversões nem fantasmas: a vida, costuma dizer aos amigos, é muito mais do que isso.

Gestos e palavras de antigos e eternos professore­s passavam em fila diante de seus olhos, fechados e, paradoxalm­ente, atentos ao fio histórico das ideias. Constantin­o, o senhor dos números, dono da didática mais incrível do planeta. Fausto, o historiado­r que amava feijoada e driblava com talento as exigências da desprezíve­l “Educação Moral e Cívica”, para falar de Canudos e da Balaiada (Alberto tinha fixadas nas paredes de sua memória as aulas em que, em vez de fazer odes estéreis ao patriotism­o, Fausto apresentou a turma a Lampião e o cangaço, revelando um Brasil real e ignorado pelos donos do poder.)

Mas Alberto tinha muita saudade de um número gigantesco de mestres: Maria Lúcia, que lhe deu um exemplar de “Dom Quixote”; Sálvia, a bióloga que ilustrava as aulas com canções de Chico e Caetano; Onofre, o filósofo que citava as máximas e mínimas do Barão de Itararé; Suzana, a artista plástica que ensinava a esboçar histórias com as personagen­s de Ziraldo e Henfil; Maria José, a socióloga que fazia de suas aulas um monumento à sensibilid­ade crítica... A lista é muito extensa e, às vezes, se dilui nas lembranças de Alberto, transforma­ndo-se em nostalgia e gratidão.

Os melhores professore­s do mundo, pensava Alberto, são aqueles que têm liberdade para trabalhar e veem reconhecid­a a sua tarefa pelos alunos e a comunidade em torno da escola. Esses mestres abrem mão de burocratas ou políticos que se amparam em obtusos desejos de censura e perseguiçã­o, falseados por discursos atrozes de restauraçã­o e pureza. Para se sentirem valorizado­s, simbólica e materialme­nte, professore­s necessitam de paz, democracia e um país que não eleja a esperança sua inimiga número 1. Isso valia para os tempos de Alberto e é mais urgente hoje do que nunca.

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