Joker, ainda uma vez
No filme de Tod Phillips, a loucura de Coringa pôde ser construída sem limites
Muito se escreveu e comentou, à época dos lançamentos (e mesmo depois), sobre o excesso de gravidade e realismo sombrio, o desprezo e o “desrespeito” ao elemento fantasioso que orientaram a ótica de Christopher Nolan na trilogia Batman (2005, 2008 e 2012). Pois bem: muitos daqueles que criticaram provavelmente se sentem agora tentados a reconsiderar aquela opinião depois de assistir “Joker” (Coringa).
Esta olhadela, digamos, nas origens do mais célebre inimigo do homem-morcego é tão lúgubre que, perto dela, os filmes de Nolan parecem inocentes passeios noturnos – embora mantenham incrível eficácia visual e discurso potente. Sua referência essencial não é nenhuma novela gráfica, já se sabe, mas sim um (um não, dois) Martin Scorsese de quatro décadas atrás. Depois de rever o filme algumas vezes, é possível defini-lo e situálo como uma releitura de “Taxi Driver” matizada com elementos de “O Rei da Comédia”. E apesar dessas influências é surpreendente que o resultado resulte especialmente bom, considerando que a obra prévia de seu diretor, Todd Phillips, pertence na quase totalidade (10 títulos) ao âmbito da comédia “bandida”.
Incrível, o grau de perturbação mental de Arthur “Joker” Fleck. E o roteiro de Phillips e Scott Silver, sem origens ou regras de comics a respeitar, conseguiu um resultado liberador: a demência do Coringa pôde ser construída sem limites. A estratégia da escritura acabou se revelando acertada porque, depois de tudo, a sociopatia perturbadora e convincente do personagem resulta num catálogo ambulante de politraumas: a disfuncionalidade familiar (pais atrozes), os abusos sofridos na infância e a violenta sistemática inflingida por uma sociedade violenta, sectária, individualista à beira de um colapso moral e da dissolução.
Este Joker traz uma novidade que também é uma virtude. Trata-se, como o título indica, de um filme e de um personagem saídos do universo DC Comics. Mas, à diferença de tudo o que foi feito anteriormente pela franquia, tomou-se a liberdade de construir uma ficção que, sem deixar de prestar tributo à saga a qual pertence – Batman não é aqui mencionado nem uma só vez, sendo citado, e ainda fugazmente, o seu mito de origem, seu trauma original –, cobrou uma autonomia pouco frequente neste tipo de produção. A virtude está na ambição do filme, que é muita, desmedida, incomum. E bem sucedida.
Que Robert De Niro – seu melhor trabalho em muitos anos – seja em “Joker” um famoso apresentador de televisão a quem Arthur admira até a obsessão é muito mais que afago cinéfilo. É a constatação de que o diretor Todd Phillips foi buscar no filme injustamente esquecido de Scorsese (“O Rei da Comédia”) um modelo a seguir quanto ao que significa ser ou não ser normal numa sociedade que ainda é regida sob a influência de uma tevê que não seja impor a ideologia dominante. Um poder midiático que cria falsas expectativas de sucesso e fama, e que não hesita em humilhar ou demonizar o diferente, o “outro”, em sua constante afirmação de conformismo e de status quo.
Joaquin Phoenix, que se consagra mais uma vez como o melhor ator de cinema em atividade, o Marlon Brando de sua geração, faz de seu Joker um ser patético, perigoso, ridículo, brutal, trágico, terno, vulnerável e comovente. Sempre a nos desafiar não apenas a rir, mas a ir além dessa resposta, a ir ao medo que se esconde atrás dela. E a garantir a nós , espectadores, que alguns excessos no filme de Todd Phillips não vão comprometer o resultado final. Extraordinário em tempo integral, Phoenix consegue inclusive ofuscar o Coringa de Heath Ledger , o que não é pouca coisa. Há toda uma humanidade sofredora em Joker-Phoenix, que nem por isso deixa de ser intrínseca e patologicamente violenta.
Como fecho, a pergunta que não quer calar ao final da projeção, ainda no escuro dos créditos: que nível de responsabilidade nós mantemos ou devemos manter por negligenciar pessoas que já estão isoladas e sofrem por problemas de saúde mental?
* Confira entrevista do colunista Carlos Eduardo Lourenço Jorge na Folha Nerd. Saiba mais usando o aplicativo capaz de ler QR Code e posicionando o código abaixo.