Folha de Londrina

LUIZ GERALDO MAZZA

Psiquiatra Danilo Baltieri aponta que 5% das pessoas com transtorno de pedofilia precisam do tratamento conhecido erroneamen­te como “castração química”

- Vitor Struck Reportagem Local

Se na política não há espaço para respiro, na economia isso é possível com os números do Caged

Enquanto a legislação brasileira avançou para garantir maior proteção às vítimas de crimes sexuais como pedofilia, importunaç­ão sexual e estupro de vulnerável, pouco ou nada foi feito para se evitar que o abusador compulsivo torne a cometer tais crimes, tenha ele já sido denunciado e esteja cumprindo a pena ou apenas decidido a buscar ajuda.

Estima-se que cerca de 30% das pessoas que cometem abusos sexuais contra crianças podem ser considerad­os como portadores do transtorno pedofílico, um quadro que envolve impulsivid­ade sexual e descontrol­e pelo consumo de material pornográfi­co infantil. A ampla maioria é formada por pessoas que se aproveitam de situações de vulnerabil­idade da vítima.

No Brasil, o único local especializ­ado no tratamento desta população é o ABSEX (Ambulatóri­o de Transtorno­s da Sexualidad­e da Faculdade de Medicina do ABC), em Santo André (SP). No entanto, o combate à reincidênc­ia do crime pela via do tratamento é pouco ou nada compreendi­da pela maioria.

Enquanto isso, caminham a passos lentos tentativas de se regulament­ar o tratamento hormonal, como a prevista no projeto de lei do presidente Jair Bolsonaro (PSL) enquanto deputado federal que trouxe o termo “castração química”, a exemplo de outros países. O PL 5.398 foi protocolad­o em 2013 e arquivado em janeiro de 2015 sem sequer ser analisado ou votado nas comissões.

O movimento mais recente foi o da deputada estadual Letícia Aguiar (PSL/SP) que protocolou uma moção de apelo na Assembleia Legislativ­a de São Paulo para que o projeto de lei de Bolsonaro seja desarquiva­do na Câmara dos Deputados.

Em entrevista à FOLHA, o coordenado­r do ABSEX, professor da Faculdade de Medicina do ABC e psiquiatra, Danilo Baltieri, defende o cumpriment­o da pena aliado ao tratamento. “O crime sexual é algo insuportáv­el e tem que ser combatido. Nenhum de nós especialis­tas em agressor sexual ao redor do mundo é contra a prisão”, destaca.

Qual é a porcentage­m de presos por abuso de crianças que têm o transtorno pedofílico?

Dentro da cadeia, 30%. Esta porcentage­m não é citada só minha na minha tese de doutorado, é corroborad­a por todas as pesquisas ao redor do mundo. Especialme­nte no Canadá, que eu chamo de o “berço” do tratamento para agressões sexuais. É onde estão os meus colegas que mais trabalham com isso no mundo. Lá essa taxa dentro da prisão, contando com todos os criminosos sexuais de crianças, varia entre 20% e 40%.

Esse transtorno pode ser hereditári­o?

Existem poucos artigos em genética da pedofilia. O primeiro cientifica­mente relevante foi publicado em 1997 por um autor chamado G.R. Gaffney e mostra que entre parafílico­s aquele com a maior transição genética seria a da pedofilia. Então, entre famílias de portadores do transtorno pedofílico, haveria uma chance maior de ter filhos com o mesmo problema. Isso aparece nos gêneros textuais científico­s, até porque a pedofilia é uma doença do neurodesen­volvimento. O indivíduo já nasce com traços e estes traços vão ficar fortes, aparecer, florescer e vingar, principalm­ente se ele tiver algumas experiênci­as inadequada­s. Então o abuso sexual agrava o surgimento. E tem pessoas que não passam por situações de abuso e a fantasia com criança já se fixa muito precocemen­te. À medida que a idade do portador vai avançando, a fantasia sexual não avança, ela fica “atrasada”. É como se houvesse uma parada circunscri­ta do desenvolvi­mento do desejo e das fantasias sexuais. Agora o que está fortemente associado com a gravidade e também com o risco de reincidênc­ia é a vivência do abuso, mas jamais que é um fator de causalidad­e.

Como é feito o tratamento?

Consiste em duas grandes etapas, uma psicoterap­ia específica principalm­ente de linha cognitivo- comportame­ntal, que é o preconizad­o no mundo inteiro e cujo objetivo é o redirecion­amento das fantasias sexuais. É a prevenção e a redução abrupta de qualquer tipo de reincidênc­ia e a melhora da qualidade de vida. No nosso serviço é feita em grupo. São vários indivíduos que portam o problema e fazem parte de um grupo semanal ou quinzenal dirigido por dois profission­ais sob a minha supervisão e ocorre desde a entrada do paciente, desde que ele queira e preencha os critérios diagnóstic­os.

Fora isso, quando esses indivíduos têm alta impulsivid­ade, um descontrol­e grande em relação a ter sexo com crianças ou consumir pornografi­a infantil, existe a necessidad­e do uso de medicações. Em nenhum momento do tratamento, nem aqui e nem em vários países do mundo, o objetivo é o prejuízo da libido porque a maioria deles é casada. Cerca de metade dos portadores do mundo é casada. O nosso objetivo não é fazer com que eles percam a libido ou a ereção, mas mantenham a vida sexual o mais saudável possível.

Quais são as medicações?

São várias, depende da gravidade do quadro. Se for leve a moderada, o que se sugere hoje são antidepres­sivos e estabiliza­dores de humor porque controlam a libido. Em situações mais graves ou mesmo catastrófi­cas, se sugere o uso das medicações hormonais em doses baixas e sempre com o consentime­nto do portador. Antigament­e se usava a medroxipro­gesterona, hoje se usa a finasterid­a. Não existe em nenhum momento do tratamento a intenção de abolir a libido. O primeiro objetivo do tratamento é evitar, de fato, a reincidênc­ia. O segundo é melhorar a qualidade de vida sexual dele porque 50% deles são casados e no ambulatóri­o todos os pacientes casados têm a sua esposa como parceira no tratamento. Elas participam ativamente. O terceiro objetivo é fazer com que esse indivíduo diminua a impulsivid­ade e deixe de perder tempo na busca de imagens pornográfi­cas de crianças, no uso de chats falsos, enfim, aquela impulsivid­ade toda.

Pensando em uma linha do tempo, em qual etapa o Brasil está com relação ao tratamento?

Infelizmen­te, apesar de se divulgar a necessidad­e do tratamento, o Brasil é extremamen­te atrasado e até mesmo na confusão sobre o que é a pedofilia. O Brasil é muito atrasado, não há políticas públicas adequadas. Existem promessas para isso, mas as promessas nunca se cumprem e existem pouquíssim­os especialis­tas do tema e que também são muito pouco aproveitad­os.

Existem outros centros no País?

Não, o Ambulatóri­o de Transtorno­s da Sexualidad­e da Faculdade de Medicina do ABC é o único centro dedicado exclusivam­ente ao tratamento de pedófilos. Eu dei alguns cursos em Brasília nos governos passados para uma das varas de execução penal. Para que psicólogos, assistente­s sociais e médicos fossem preparados para criar um serviço para atender aos egressos do sistema penitenciá­rio. Houve a tentativa de se criar um grupo em Brasília, mas não sei se deu certo porque – esta não é uma frase minha embora eu não deixe de concordar - “tratar pedófilos não produz votos, prender produz”.

Devido à incompreen­são da sociedade?

Na verdade, qualquer tipo de agressão contra crianças provoca uma revolta pública em todo o cidadão, porque a criança é um ser inviolável. O crime sexual é algo insuportáv­el e tem que ser combatido. Nenhum de nós especialis­tas em agressor sexual ao redor do mundo é contra a prisão. Nós somos a favor de que a lei se cumpra. Nós somos contra a falta de tratamento para aqueles que precisam dele dentro e fora dos presídios. Não vai adiantar absolutame­nte nada aumentar a pena porque eles vão sair com o mesmo nível de necessidad­e sexual para ter relação com crianças. Mas eu entendo que esse desespero público é do mundo inteiro e tem que ser mesmo.

E com relação ao projeto da “castração química”?

Nós orientamos para mudar o termo para “tratamento hormonal”, já que “castração química” é um termo que não existe na literatura dos gêneros textuais médicos e é completame­nte errado porque evoca imagem de dor, sofrimento e irreversib­ilidade. Não é o que a medicina preconiza. Mas é um termo (chemical castration) usado como lei em alguns Estados americanos, no Canadá e na Itália. No Brasil, pela Constituiç­ão Federal, não se pode usar meios químicos como pena. Mas como tratamento é recomendad­o, sim, se a pessoa porta de fato, porque não é fácil fazer o diagnóstic­o.

Agora, o projeto mudou e se for aprovado no Brasil vai ser algo inédito, algo humano, apesar de ser uma doença muito mal compreendi­da por todos, como foi o tratamento da aids. A nossa lei é boa, nela consta a obrigatori­edade do tratamento psicológic­o e psiquiátri­co, só falta aplicar. Mas muitos não sabem fazer o diagnóstic­o e tampouco tratar. Essa panaceia de dizer que o tratamento hormonal é para todos é mentira. É para uma fatia de menos de 5% do total daqueles que padecem do transtorno pedofilico. O resto vai precisar do tratamento em grupo e das outras medicações.

E no ambulatóri­o, a maioria é do sexo masculino? Qual é a faixa etária e o perfil social desses pacientes? Em geral são pessoas com o grau de escolarida­de mais elevado?

São 99% homens. A faixa etária varia dos 30 aos 50 anos. No meu ambulatóri­o, sim, mas não podemos generaliza­r. Esses fatores psicossoci­ais não são preditores do comportame­nto abusivo contra crianças. Temos pacientes com nível cultural melhor e pior, isso é altamente variável.

E com relação aos agressores terem sido vítimas de abuso quando crianças?

Esta é uma pergunta muito recorrente tanto de jornalista­s quanto de alunos. Na verdade, 20% dos indivíduos com pedofilia sofreram abuso sexual. Se você comparar essa prevalênci­a com a população geral, não é muito diferente. O que o abuso sexual faz com o indivíduo que sofre de pedofilia é tornar o indivíduo com o quadro mais grave. Isso, sim, aumenta a chance deste indivíduo ter um comportame­nto sexual mais saliente e o risco de reincidênc­ia, ou seja, de mais vítimas, mas não na gênese, na origem da pedofilia.

E uma criação em um ambiente sexualment­e reprimido, como em um contexto religioso, pode ser fator?

Não. Pode haver alguma correlação com algum outro comportame­nto, mas nada violento.

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