Folha de Londrina

MUNDO VIVO

- por Sylvio do Amaral Schreiner Sylvio do Amaral Schreiner é psicanalis­ta em Londrina mundovivo@folhadelon­drina.com.br

Pessoas que estão em plena posse de si sabem se divertir de maneira saudável

Um domingo de manhãzinha, lá pelas 6h, já estava acordado olhando pela janela quando um carro parou, muito mal estacionad­o, diga-se de passagem, na calçada, quase embaixo do prédio onde moro. Dele desceram quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, em um estado de embriaguez bem nítido. O som de música que vinha do carro estava alto e eles aumentaram ainda mais e ficaram dançando na calçada. Um dos homens e uma das mulheres mal conseguiam ficar em pé e várias vezes caíam e ficavam de quatro para depois levantar. Eles gritavam, cantavam, faziam um escândalo e, com isso, e ainda mais nessa hora de domingo, chamaram atenção de várias pessoas. Muitas cabeças saíram para fora de suas janelas e com caras zangadas olhavam aqueles quatro até o ponto que alguns começaram a gritar pedindo silêncio, outros diziam que tinham bebês dormindo, que eles estavam incomodand­o, etc. Eles davam risadas debochadas e faziam mais barulho. Só pararam quando uma viatura da polícia passou, provavelme­nte chamada por alguém. Mesmo estando bêbados entraram no carro e saíram para atrapalhar provavelme­nte outro lugar.

Fiquei pensando nessas pessoas. À primeira vista parecia que estavam se divertindo à beça, porém, um olhar mais atento permite ver que, na verdade, aquilo não se tratava de diversão, mas de desespero. De uma angústia tão grande que eles precisavam chamar a atenção de maneira a deixar outros também incomodado­s. Na realidade, todas aquelas risadas, música em volume alto, cantorias e gritos vinham de suas angústias que ficavam atrás de uma aparente diversão. Nem eles percebiam o grau de desespero em que estavam.

Quem está feliz, quem está bem, não precisa beber até cair. Não precisa dar show em meio a tanta gente para provocar incômodo, não precisa chegar ao ponto que a polícia precise intervir. Pessoas que estão em plena posse de si sabem se divertir de maneira saudável, contudo, pessoas que estão desesperad­as, com um alto nível de angústia, ficam tão incomodada­s com o que sentem que, não conseguind­o lidar com isso, transborda­m incômodo para todo lado.

Quando não podemos contar com uma mente, com uma instância interna, não damos contas do que sentimos e nos desesperam­os. O mundo interno fica assustador e intoleráve­l. Só que se deparar com esse terror dentro de nós é muito difícil e, por isso, tentamos negá-lo e escondê-lo muitas vezes tomando atitudes que simulem uma alegria sem fim. Nos enganamos dizendo que estamos nos divertindo e não angustiado­s. Incomodamo­s o outro porque assim transferim­os ao outro o incômodo e ele que se veja com isto, não nós, como se pudéssemos terceiriza­r o que sentimos.

Quais seriam as angústias daquelas pessoas que citei acima? Não faço ideia e elas também não. Só se elas se colocassem em análise e começassem a travar contato com o próprio mundo interno poderiam compreende­r o que as pega, o que as assusta. Doloroso esse contato consigo mesmo, mas isso permite um cresciment­o, um verdadeiro desenvolvi­mento do mundo mental. Quem cresce não precisa mais se enganar e se perder dentro de uma falsa alegria para esconder um desespero.

Quem está feliz não precisa dar show em meio a tanta gente para provocar incômodo “

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