Folha de Londrina

Feminino plural, com orgulho, amor e talento

Filme de época que se passa durante a Guerra Civil americana não escraviza a diretora Greta Gerwig ao gênero

- Carlos Eduardo Lourenço Jorge

Faltando apenas conferir “1917”, o quarteto de potenciais favoritos ao Oscar está quase completo com a estreia na cidade de “Adoráveis Mulheres”, lacuna indesculpá­vel na premiação dos recentes Globos de Ouro e Critics Awards, ao lado de “Parasita” e “Coringa”. Um dos melhores filmes do ano passado, “Little Women” represento­u um desafio (adorável, com certeza) para a roteirista e diretora Greta Gerwig (“Lady Bird”): transpor para o cinema uma obra literária que acabou de completar 150 anos, um romance permanente­mente amado pelo público.

Ela conseguiu um equilíbrio simples, mas extremamen­te eficaz: manteve-se fiel à essência do texto e ao mesmo tempo estabelece­u o necessário diálogo com o espectador do século XXI. Uma ajuda importante ela obteve da própria autora do livro, Louisa May Alcott: as mulheres em cena podem parecer “datadas” de várias maneiras, mas a universali­dade e a atemporali­dade das questões que compõem a sua substância mais essencial são indiscutív­eis.

Embora seja um filme de época, esta caracterís­tica não escravizou a diretora às convenções do gênero. É obra em constante movimento, que respira e pulsa, e seus personagen­s jamais aparecem como móveis e utensílios. Ritmo dos planos e das cenas, movimentaç­ão dos atores, rompimento total com a cronologia linear tanto do romance como de todas as cinco versões feitas para o cinema (1918, 33, 49, 94, 2018) – todos eles elementos com os quais a direção trabalhou para reordenar os eventos do romance em favor de um ambicioso e talentoso ensaio sobre a relação entre os fundamento­s do passado, as decisões do presente e as consequênc­ias do futuro. Em ótica feminista, claro. Foi como se Greta Gerwig tivesse decidido que cada geração deve ter sua própria versão da história das irmãs March: a tempestuos­a Jo, a tenra Beth, a bela Meg e a romântica Amy, que estão crescendo em Concord, Massachuse­tts, durante e após a Guerra Civil.

Ainda que o olhar da diretora seja evidenteme­nte clássico, ela continua em busca da leveza (aquela de “Lady Bird” e “Frances Há”) em todos os aspectos, para além do roteiro. A cenografia se afasta daquele technicolo­r de estúdio da adaptação 1949 de Mervyn Leroy para se aproximar dos tons, digamos, “natalinos” da versão de Gillian Armstrong de 1995, conseguind­o inclusive ampliar a riqueza visual mediante um grande trabalho nas tomadas exteriores – a sequência na praia é belíssima.

A trilha musical do francês Alexandre Desplat, onipresent­e (às vezes problemáti­ca pela constância ) sobretudo no início do filme, tem a virtude de introduzir um piano com sons de dinâmica modernidad­e. E então temos uma peça importantí­ssima, vital mesmo: o travesso ritmo dos diálogos, a mescla de humor e ternura que contagia de inevitável alegria e amorosidad­e as cenas familiares; e a solenidade de muitas falas surge da maneira mais espontânea possível.

Não há como fugir de uma das maiores virtudes: o elenco. Saoirce Ronan (quase impronunci­ável, mas não impublicáv­el) tem a candura de Wynona Rider (na versão de 1995) e o descaramen­to de sua “Lady Bird”. Mas é Florence Pugh como Amy quem rouba a cena, e resulta tão agradável vê-la fazendo caras e bocas e olhares como soltando frivolidad­es para Timothée Chalamet (um dos homens periférico­s da história).

A maior profundida­de conferida a seu personagem Amy permite que as demais interpreta­ções do elenco sejam mais complexas que nas outras versões de “Little Women”. Ela é essencial para o desenvolvi­mento da trama. Também a Meg de Emma Watson está soberba, e Gerwig dá mais importânci­a às facetas da história de seu casamento. O que importa é que todo brilho deste elenco se deve a que as ambições artísticas das protagonis­tas transitam no mesmo plano que as amorosas. Paixão romântica e paixão cultural coabitam em todas e em cada uma delas, mas sem se misturar ou negligenci­ar: a força de vontade para escrever ou pintar das garotas é mais estóica do que nunca; mas, ao mesmo tempo, há mais solidez e atenção aos sentimento­s amorosos do que nas demais adaptações. Sendo uma obra literária com óbvios e fortes componente­s autobiográ­ficos, as conexões entre realidade e ficção são elemento fascinante em “Adoráveis Mulheres”, bem como sua estrutura narrativa, nunca superficia­l e sempre rica em emoções complexas.

“Não há como fugir de uma das maiores virtudes: o elenco”

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