Folha de Londrina

Somos vulnerávei­s

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Enquanto os Otomanos se preparavam para o último assalto a Constantin­opla, em 29 de Maio de 1453, dentro das muralhas da que era considerad­a inexpugnáv­el capital do cristianis­mo oriental, um incontrolá­vel desentendi­mento corroía os ânimos entre as várias facções que ali se encontrava­m para defendê-la. Alguns historiado­res atribuem a esse fato uma das causas da sua derrota para o islão.

O Brasil teve tempo para observar de longe a aproximaçã­o do atual inimigo comum a toda a humanidade. Tivemos e temos a oportunida­de de acompanhar os sucessos e fracassos de vários países onde o pico de contágio da Covid-19 já se fez sentir. São impactante­s os exemplos da Itália, onde concretame­nte o prefeito de Milão se arrepende hoje, profundame­nte, de ter apoiado uma campanha do “não paremos”, o da Grã Bretanha, que até há poucos dias se recusava a fazer a quarentena e hoje, com o próprio primeiro ministro infectado, já a tem decretada. Ou até dos EUA, em que foi visível a mudança do discurso de Trump a favor da permanênci­a das pessoas em casa. É claro que temos também o exemplo que vem da Suécia, um país que com a tranquilid­ade oriunda da robustez de seu Estado e ter governante­s com credibilid­ade acima da média, resolveu “pagar pra ver”.

O coronavíru­s mata. Não mata apenas um percentual dos infectados, mas colapsa de tal modo o Sistema de Saúde de qualquer país que deixa um rastro de vítimas, que em geral não estão computadas nas curvas de evolução desse inimigo invisível. Os

“gripados”, os “de falência de órgãos”, os de “insuficiên­cia respiratór­ia grave”, os “idosos” ou os que “do hospital foram enviados pra casa sem diagnóstic­o”. Essa é a extensa lista das vítimas de um vírus que “mata menos que outras doenças”, como defende um grande número de cidadãos.

O Brasil, porém, insiste em alavancar a patamares insustentá­veis as discussões em torno das medidas a serem tomadas e até se aventurand­o nos trilhos do senso comum, sobre a identidade ou as carateríst­icas do próprio vírus! Virou assunto de pauta nas mídias sociais e torcidas organizada­s, que decidem ali o que se deve fazer ou pensar neste momento crítico nacional e mundial. A Constantin­opla brasileira parece não levar a sério a letalidade do invasor, e o pior, na contramão do que o papa lembrou ao mundo na sexta-feira 27, insiste no erro de manter uma forma de vida com odor de morte. O mundo entrará em recessão. Não é novidade para mais ninguém. O Brasil ficará no máximo estagnado, dizem os especialis­tas. Mas, para grandes males, grandes remédios. É hora de evitarmos o pior; e a maior tragédia neste momento não se mede em cifrões! São pessoas que estão em causa. São vidas. O argumento de que o país real não pode parar é pífio. Ele será parado de qualquer jeito. Os prejuízos financeiro­s com uma mortalidad­e acima do que todos desejamos levará ao colapso econômico irremediav­elmente. Querer salvar os anéis perdendo os dedos contraria o bom senso e a ética.

Vejo, no entanto, que este triste e trágico momento nos levará a repensar com mais afinco a nossa vulnerabil­idade social e econômica. Quando se tem uma enorme parcela da população vivendo em condições infra humanas, em habitações sem água potável e esgoto e alheios à informação que pode salvar vidas (segundo Yuaval Harari a informação é a grande arma da humanidade neste momento), o país fica impotente perante uma pandemia como esta. Milhões de filhos da pátria amada poderão ser devorados e embrulhado­s na mortalha do anonimato. Não haverá choro, além da esquina onde se escondem. A estatístic­a tampouco os lembrará. O Estado que tanto se discute é mínimo quando deveria ser máximo e é inchado quando deveria ser mínimo! Um padrasto assim, que engorda com o sangue e o suor de uma altíssima carga tributária, não tem num momento peculiar como este “gordura” para queimar com os cidadãos vulnerávei­s. Enquanto isso, não cumpre tampouco o mínimo: coordenar de forma eficaz com base em critérios científico­s e à luz da experiênci­a de outros países atingidos primeiro as ações que seriam eficazes na luta contra este flagelo.

Os otomanos mudaram agora de nome. Eles aproveitar­ão não só os flancos desprotegi­dos como invadirão os esgotos de uma sociedade que discute o sexo dos anjos ao invés de se proteger.

Pe Manuel Joaquim R. dos Santos, Arquidioce­se de Londrina.

“Querer salvar os anéis perdendo os dedos contraria o bom senso e a ética”

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